A linguagem da ciência é muitas vezes complexa e intrincada, repleta de jargões que deixam o comum dos mortais confuso e, por consequência, imune à sua importância. Nas últimas décadas, os cientistas têm feito um esforço para abrir as portas dos laboratórios e descomplicar o que ali é feito em prol da saúde, mas também dos avanços tecnológicos com impacto na economia. Mas isso só é possível com embaixadores do conhecimento científico — pessoas como Nuno Maulide, que se tem desdobrado em livros e conferências para promover a divulgação do saber. “O mundo em que vivemos é um mundo que tende a colocar a arte e a ciência em dois polos distintos”, aponta o químico, que foi, em 2018, considerado Cientista do Ano na Áustria. Porém, encontra pontos em comum entre as disciplinas e usa-os para explicar a química orgânica, mas também para traçar paralelismos entre as duas áreas.
Foi isso que procurou fazer durante a cerimónia dos Prémios Pfizer (ver caixa para conhecer os vencedores da 67ª edição) com a palestra “A arte e a ciência”, ao longo de 45 minutos. Para o professor da Universidade de Viena o mundo divide-se entre a dimensão do concreto, como um casaco ou uma mesa, e a dimensão do abstrato, como as emoções e a inspiração. A magia que vê na arte e na ciência é a ponte que constrói entre esses dois mundos — é a imaginação que os conecta, ainda que com objetivos diferentes.
“Na interseção entre a arte e a ciência encontramos uma das coisas que mais falta nos faz na sociedade, que é a capacidade de olhar para o mundo sem ideias preconcebidas”, defende. É essa liberdade na abordagem dos problemas que permite ao compositor, como Bach ou Chopin, imaginar novas melodias, da mesma forma que o cientista, como Einstein ou Borodin, parte sem preconceitos à procura de uma solução para um desafio concreto e cuja aplicação prática pode ainda não existir.
A investigação em torno do RNA mensageiro não surgiu com a pandemia de covid-19, mas mais de uma década antes com um propósito diferente, sem adivinhar que em 2020 iria desempenhar um papel crucial para a humanidade. Ou até mesmo o caso de Richard Heck, que publicou no meio académico, em 1968, uma reação química “exótica e completamente inútil” que veio a contribuir para ligar átomos de carbono usados na oncologia e na produção de ecrãs finos. Em 2010 foi laureado com o Prémio Nobel da Química pela contribuição para a descoberta.
“Isto é uma lição de ferro da ciência. Ninguém sabe hoje o que daqui a 30 ou 40 anos realmente sobrevive ao teste do tempo”, diz Nuno Maulide, que usou os seus dotes de pianista para pintar cada lição científica com uma peça musical diferente. De Bach a Einstein, numa verdadeira sinfonia entre a arte e a ciência, o cientista conquistou leigos e especialistas.
Maulide, que é uma espécie de pianista preso no corpo de um nerd de laboratório, lembrou ainda “o valor da investigação em colaboração” e usou Chopin para mostrar como a junção criativa de “uma melodia chatíssima, cheia de notas repetidas”, e um “acompanhamento chatíssimo” pode resultar numa obra de arte. Tal como na ciência, “é um exemplo em que o todo é muito mais do que a soma das suas partes”.
Os vencedores de 2023
Prémio investigação básica
Origem de 90% dos casos de Parkinson pode estar nos intestinos. A complexidade do cérebro humano continua a motivar a curiosidade de cientistas em todo o mundo, qual detetive fascinado pelo móbil do crime. Os mistérios que guardamos no crânio são ainda um segredo, mas a equipa liderada pela investigadora Sandra Morais Cardoso, da Universidade de Coimbra, procurou descobrir uma parte com um projeto que tenta perceber como surge a doença de Parkinson — e que valeu agora à sua equipa o prémio no valor de €30 mil. Em cerca de 10% dos casos a origem é genética, mas nos restantes 90% sabe-se apenas que a causa não está no cérebro. A partir da correlação direta entre alterações do microbioma intestinal e o aparecimento e progressão da doença, verificou-se que existe uma toxina (BMAA) que desencadeia, quando consumida de forma crónica, um processo neurodegenerativo compatível com a doença de Parkinson. A toxina é encontrada em vários alimentos de origem marinha — como “os pequenos crustáceos, bivalves, alguns mariscos e peixes”, explica o investigador Nuno Empadinha — e leva à inflamação do cérebro, que culmina na perda de neurónios e consequente disfunção motora. Com esta descoberta poderá ser possível “identificar novos alvos terapêuticos que possam chegar ao doente e tentar encontrar uma cura”, afiança a líder do grupo.
Prémio investigação clínica
Imunidade híbrida contra vírus que provoca covid-19. Apesar dos elevados níveis de vacinação registados no período crítico da pandemia, no início de 2022 surgiu a variante Ómicron, que foi responsável por um elevado número de infeções. O investigador Luís Graça, do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, desenvolveu um estudo para medir “o grau de proteção que se adquire com as vacinas que são utilizadas na comunidade”. O objetivo era perceber se a imunidade híbrida — conseguida pela vacinação e por uma infeção posterior — protegia a população contra novas variantes do vírus SARS-CoV-2. “Também foi possível avaliar a diminuição da proteção adquirida por imunidade híbrida ao longo do tempo. Verificou-se que a proteção adquirida em pessoas vacinadas após uma infeção decai progressivamente ao longo dos oito meses seguintes, mas mesmo ao fim desse período a proteção permanece bastante robusta”, detalha. O curso da investigação — que valeu agora à sua equipa o prémio no valor de €30 mil — permitiu utilizar os resultados para definir, em conjunto com a Direção-Geral da Saúde, recomendações de saúde pública mais adequadas.
Frases da cerimónia
“Nunca é demais assinalar o absoluto relevo que tem nas nossas vidas o investimento na investigação e no desenvolvimento”
Manuel Pizarro
Ministro da Saúde
“A investigação faz-me pensar que Portugal pode ser mais do que um país turístico. Podemos investir em ciência e para isso é preciso termos em conta as pessoas”
Sandra Morais Cardoso
Investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
“A investigação é difícil, frustrante, e é muito importante para as pessoas que a fazem que exista reconhecimento pelo seu trabalho”
Luís Graça
Investigador do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa
Investigação
Há 67 anos que os Prémios Pfizer — a que o Expresso se associa como media partner — distinguem os melhores trabalhos de investigação básica e clínica: já foram agraciados mais de 700 investigadores e premiados mais de 200 trabalhos. O mais antigo galardão na área da investigação biomédica em Portugal resulta de uma parceria entre a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (SCMED) e a farmacêutica.
Textos originalmente publicados no Expresso de 17 de novembro de 2023