Portugal precisa de inverter a erosão da saúde pública

Francisco de Almeida Fernandes
Muito mudou desde que Portugal tem um Serviço Nacional de Saúde (SNS), considera Manuel Pizarro, que lembra os 13 anos de esperança média de vida que os portugueses ganharam com a democratização do acesso à saúde. O ministro falava, na terça-feira, numa conferência organizada pela Escola Nacional de Saúde Pública, em Lisboa, onde reconheceu a importância de resolver dois dos maiores desafios do sector: a promoção da saúde e o tema dos profissionais. “Temos de ter consciência que há uma profunda insatisfação de uma grande parte dos recursos humanos”, afirmou.
A realidade na Europa mostra que, neste ponto, o país não está sozinho. Aliás, a presidência belga do Conselho da União Europeia, cujo mandato se inicia no primeiro semestre de 2024, elegeu a crise dos recursos humanos na saúde como tema prioritário. Para Josep Figueras, diretor do Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde, é preciso que os Estados aprendam “um conjunto de lições que a covid-19” deixou e contrariem o que diz ser “um legado de erosão da saúde pública”. Em causa está, elenca, a falta de investimento, a perda de autoridade sanitária junto da população e, mais uma vez, a escassez de médicos e enfermeiros. E pede aos profissionais para apostarem em melhor comunicação como arma para cumprir, entre outros, o desígnio da prevenção.
Saúde pública na era do digital
Durante a conferência, que juntou dezenas de especialistas ligados ao sector, foram debatidos temas centrais para o futuro do sistema de saúde. Uma das questões essenciais, consideram os peritos, passa pela criação “de um sistema de informação” que recolha “dados de forma sistematizada” com recurso a ferramentas de inteligência artificial. Para Duarte Vital Brito, da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, só com informação detalhada sobre o estado clínico da população e os indicadores ambientais é que será possível prevenir a doença e promover a saúde.
“Os dados em saúde são hoje um enorme ativo no mercado” que não deve ser desperdiçado, aponta Margarida Santos, do movimento Mais Participação. A tecnologia pode, defendem, aumentar a equidade no acesso e libertar os profissionais para o contacto direto com os doentes. Recorde-se que o Plano de Recuperação e Resiliência tem €345 milhões para esta rubrica.
Comunidades mais saudáveis
Ema Paulino acredita que as farmácias comunitárias, cuja associação nacional dirige, têm um papel fundamental na promoção da saúde a nível local. “Temos uma ferramenta que permite antecipar em duas semanas os picos de infeções respiratórias”, exemplifica para justificar a capacidade de atuação destes espaços. Os oradores, entre os quais Susana Viegas, do Centro de Investigação em Saúde Pública, acreditam que, mais do que literacia, é preciso facilitar a adoção de comportamentos saudáveis.
“Se no supermercado as comidas saudáveis forem muito caras e as outras muito baratas, as pessoas não conseguem adotar esses comportamentos”, considera o professor Alexandre Abrantes. O caminho deve passar por criar ambientes favoráveis à prevenção, mas também por olhar para a saúde de forma global, em que são considerados fatores como a poluição ou os rendimentos da população.
Profissionais precisam de motivação
A falta de médicos e enfermeiros é um problema que não se resolve apenas com a melhoria das condições de trabalho. Fernando Araújo, diretor-executivo do SNS, não tem dúvidas de que será preciso “formar mais” recursos nesta área para suprir as carências do futuro. A formação, refere António Dinis, da Ordem dos Médicos, deverá incluir cada vez mais competências tecnológicas, sociais e de investigação científica. No entanto, a transformação tem de vir de cima e isso implica eliminar a interferência política na gestão dos hospitais. “Em muitos casos têm sido nomeadas pessoas sem experiência ou formação na área, pessoas com um percurso totalmente político”, critica Xavier Barreto. O líder da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares defende que a escolha deve ser entregue à Direção Executiva do SNS para que o sistema tenha “lideranças fortes e capazes”.
Colaboração com impacto na saúde
Dados, condições laborais e trabalho em rede foram mantras várias vezes ouvidos na conferência da ENSP.
“Temos de pensar se não faz sentido (...) criar uma unidade de análise inteligente de dados em saúde”, sugere Bruno Macedo, da Fundação Calouste Gulbenkian. Segundo o perito, um projeto desta natureza permitiria melhorar a “prestação direta de cuidados, a eficiência da gestão e dos resultados do SNS, e ter uma perspetiva mais preditiva” das doenças.
Ricardo Baptista Leite, ex-deputado e líder da I-Dair, diz ser essencial “mudar o paradigma para termos sistemas orientados para a qualidade de vida” e, para isso, é fulcral colocar “os doentes à mesa” em que são tomadas as decisões. Macedo acrescenta ainda que, mais do que promover a ligação entre público e privado, urge criar “sinergias” entre a saúde e “os sectores da educação e da justiça”. “Temos de criar uma cultura de colaboração intersetorial que permita garantir a equidade no acesso ao SNS”, remata.
Além da reflexão, a conferência foi ponto de partida para a elaboração de um documento participativo, com mais de 50 instituições, com recomendações de políticas públicas. A apresentação deverá acontecer em fevereiro.
Textos originalmente publicados no Expresso de 6 de outubro de 2023
REPENSAR A SAÚDE
O futuro da Saúde, os desafios da colaboração e as oportunidades da inovação marcaram a conferência organizada pela Escola Nacional de Saúde Pública e que contou com o Expresso como media partner.
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