O tempo não pára de correr. É indiferente aos desafios que cada um vive e, sobretudo, nunca regressa. No caso de Manuela Bispo, os dois anos que perdeu entre janeiro de 2020, quando lhe foi prescrito um medicamento que podia matar o cancro que a assolava, e janeiro de 2022, quando esse fármaco foi aprovado pelo Infarmed, fizeram toda a diferença. “Era um tratamento inovador que estava na altura em aprovação e não me foi concedido. A médica fez um pedido especial, mas foi negado”, recorda.
A professora de História, hoje com 63 anos, recebeu em junho de 2019 um diagnóstico de cancro do ovário, uma doença rara e altamente letal. Ao contrário do que acontece com outras patologias, este tumor é muito difícil de detetar precocemente pela ausência de sinais de alerta e por não existir ainda um método de rastreio validado pela ciência. A diretora de oncologia do IPO do Porto, Deolinda Pereira, explica que os sintomas são “muito inespecíficos” e podem confundir-se com muitos outros problemas de saúde. Sensação de enfartamento, dor ao urinar ou até prisão de ventre podem ser algumas das pistas clínicas que passam, no entanto, despercebidas junto das doentes e dos profissionais de saúde. “Muitas vezes, quando há um sintoma [o cancro] já está num estádio avançado”, observa Cláudia Fraga, presidente do Movimento Cancro do Ovário (MOG) e também ela uma sobrevivente. Segundo os peritos, isto acontece em 70% a 80% dos casos.
A possibilidade de diagnóstico precoce através de rastreio é, para já, uma miragem. Aumentar a literacia sobre os cancros ginecológicos — que incluem o do colo do útero, do endométrio ou vaginal — é, na perspetiva das associações de doentes, a melhor forma de deixar as mulheres de sobreaviso. “Qualquer sintoma que persista além de duas semanas ou que mude o seu padrão deve ser avaliado”, esclarece o ginecologista oncológico Henrique Nabais. Foi o que fez Manuela Bispo em junho de 2019, quando recorreu às urgências hospitalares. “Fiquei surpreendida quando a médica me deu o diagnóstico. Nunca tinha ouvido falar disto”, assume.
Hoje, quatro anos mais tarde, já é uma especialista na matéria pelos piores motivos. A professora foi sujeita a três cirurgias e a tratamento com quimioterapia, mas o teste genético que fez por despiste acusou mutação BRCA1. Trata-se de um de dois genes (BRCA1 e BRCA2) cuja função é proteger o material genético das células — o problema é que quando estes genes sofrem uma alteração existe maior probabilidade de desenvolver algum tipo de cancro.
Contudo, os avanços da ciência permitiram criar um antídoto — o inibidor da PARP — que pode resultar em cura se for utilizado em primeira linha, ou seja, logo no primeiro tratamento. Além disso, reduz o risco de recidiva (o ressurgimento de novo tumor). Embora o medicamento inovador já existisse em Portugal em janeiro de 2020, quando a médica de Manuela fez o pedido excecional ao Infarmed, não estava ainda aprovado para uso comparticipado pelo SNS. “A justificação [para a recusa do pedido] foi que não havia risco iminente de vida”, conta. Dois anos depois, a terapêutica foi autorizada para doentes com mutação genética, mas aí já era tarde para Manuela.
Em junho, o cancro voltou e o pesadelo recomeçou: novos ciclos de quimioterapia, a possibilidade de novas cirurgias invasivas e uma vida em suspenso. “Sinto-me magoada e injustiçada por não poder ter tido acesso ao fármaco. Tenho muito mais medo agora do que tive na primeira vez”, confessa.
Manuela Bispo é apenas uma de centenas de mulheres que viram negada a possibilidade de cura. Todos os anos, o cancro do ovário afeta cerca de 500 pessoas e, dessas, quase 400 perdem a batalha. Apenas 15% das mulheres afetadas pela doença tem acesso à medicação por ter uma mutação genética, enquanto as restantes 85% lutam pelo direto à terapêutica com o apoio de associações como a Evita ou a MOG. Henrique Nabais considera que a resistência do Estado em financiar este tipo de tratamento não é “falta de sensibilidade”, mas antes “um conjunto de coisas que funciona mal em Portugal” e excesso de “burocracia”. De acordo com os dados, a inovação em oncologia demora 713 dias a chegar aos doentes portugueses, enquanto na Alemanha o tempo de espera não ultrapassa os 102 dias. “Estamos em luta por estes inibidores. Estamos à espera de quê? Que morram mais mulheres?”, questiona Cláudia Fraga.
Enfrentar o futuro com esperança
No Dia Mundial do Cancro Ginecológico, que se assinala a 20 de setembro, a conferência dedicada às doenças oncológicas raras juntou médicos, decisores públicos e representantes de doentes. Entre os convidados do “Cancro ginecológico em Portugal: enfrentar o futuro com esperança” estiveram Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde; António Araújo, diretor do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar Universitário Santo António; e Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed. Durante o evento foi apresentado o documentário “Viver com cancro do ovário em Portugal”, que dá a conhecer as histórias de duas mulheres com esta patologia e que pode ser visto, de forma gratuita, no YouTube.
Citações
“Pedimos o fármaco junto do Infarmed. A resposta habitualmente é negativa (...). É uma luta constante”
Deolinda Pereira
Diretora do Serviço de Oncologia do IPO Porto
“O panorama para aceder à inovação não é brilhante, podia ser melhor. Há um grande caminho a percorrer”
António Araújo
Diretor do Hospital de Santo António
“Temos de estar juntos para salvar o SNS. Há de chegar uma altura na nossa vida em que não podemos dispensar o SNS”
Maria de Belém Roseira
Ex-ministra da Saúde
Doenças raras, pessoas únicas
Todos os anos, Portugal regista cerca de 3 mil novos casos de cancro ginecológico. O Expresso promoveu, com o apoio da GSK, uma conferência a 20 de setembro para assinalar o dia mundial da doença e refletir sobre como reduzir a sua incidência.
Textos originalmente publicados no Expresso de 22 de setembro de 2023