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O diagnóstico está feito, falta agora passar à prática

São cerca de 60 mil os novos casos de cancro anuais em Portugal, um número que corresponde a dois terços dos nascimentos
São cerca de 60 mil os novos casos de cancro anuais em Portugal, um número que corresponde a dois terços dos nascimentos
José Fernandes

Coordenação: Portugal precisa investir numa rede de cuidados bem oleada, articulada e eficiente e de melhorar acesso aos rastreios oncológicos. Prevenção é “chave” para a sustentabilidade futura do SNS, mas é essencial agir

Francisco de Almeida Fernandes

Mais do que programas e planos de transformação da saúde em Portugal, o país precisa de passar da teoria à prática. Esta é, pelo menos, a perspetiva dos especialistas que participaram na última conferência organizada pela Parceria para a Sustentabilidade e Resiliência dos Sistemas de Saúde (PHSSR, na sigla em inglês), que juntou, no dia 20, médicos, administradores hospitalares e representantes de doentes.

“O maior problema da saúde em Portugal — mas, já agora, em todo o mundo e Europa desenvolvida — é o acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde”, afirma Álvaro Beleza, que vê na articulação entre os sectores público, privado e social parte da resposta a este desafio. Aliás, o diretor do serviço de Imuno-Hemoterapia do Centro Hospitalar Lisboa Norte considera, por isso, a decisão de criar uma direção-executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) como “a maior reforma em décadas” na saúde. O trabalho em rede e a coordenação nacional dos recursos nesta área fazem parte das recomendações deixadas pelos peritos da PHSSR (ver caixa) e reúne consenso entre os especialistas ouvidos pelo Expresso.

Rita Moreira, vogal da direção-executiva do SNS, concorda com o diagnóstico feito e reafirma o compromisso da equipa a que pertence de “mudar e melhorar” o acesso aos cuidados de saúde e, a montante, aos rastreios. “Temos de focar os nossos profissionais na prevenção”, afiança a responsável, que vê na promoção da saúde e no aumento da literacia a “chave da sustentabilidade futura do SNS”. Recorde-se, a este propósito, que a Direção-Geral da Saúde (DGS) apresentou, já este mês, o seu novo Plano Nacional de Literacia em Saúde e Ciências do Comportamento, num claro alinhamento com a importância de diminuir a carga de doença no país.

“O diagnóstico está feito, agora falta passar à prática”, considera o diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, que tem confiança na qualidade da nova estratégia portuguesa para o cancro. O documento preparado pela DGS esteve em consulta pública até agosto, mas dez meses depois ainda não viu a luz do dia. “Essa estratégia está fechada e à espera de publicação pelo Ministério da Saúde”, justifica José Dinis.

A questão torna-se particularmente relevante numa altura em que esta é uma prioridade para a União Europeia (UE), que apresentou, em 2021, o plano comunitário para reduzir a incidência de cancro nos Estados-membros e melhorar a qualidade de vida dos sobreviventes. Para Portugal, onde todos os anos há 60 mil novos casos e cerca de 30 mil mortes oncológicas, este é, também, um tema crucial, ainda que o país esteja entre os bons alunos na Europa. “Temos um dos sistemas de saúde que não só diagnostica, como trata cancro com a maior eficiência. Estamos com melhores resultados em termos de sobrevivência dos doentes com cancro em Portugal em relação à média europeia”, reconhece o presidente do Instituto Português de Oncologia do Porto. Júlio Oliveira diz, porém, que existem “grandes assimetrias” no acesso a rastreios de norte a sul e defende maior aposta do Serviço Nacional de Saúde nesta atitude de diagnóstico precoce.

Rastrear é palavra de ordem

Parte da estratégia europeia para as doenças oncológicas passa pelo alargamento dos rastreios aos cancros do pulmão — um dos que mais mata em Portugal —, próstata e gástrico, que se juntam aos da mama, do colo do útero e colorretal já em curso. Se é verdade que, como afirma a Liga Portuguesa Contra o Cancro e sustenta Júlio Oliveira, no rastreio do cancro da mama o país tem uma cobertura ao nível dos melhores na Europa, o mesmo não acontece no colorretal e a dificuldade está na organização. “Em 2022, foram enviados 270 mil convites para o rastreio (...) e quando 220 ou 230 mil são feitos na zona Norte, está tudo dito sobre a equidade neste país”, critica José Dinis. O estrangulamento do processo acontece após a análise de sangue oculto nas fezes, que, se for positiva, implica encaminhar o doente para a realização de colonoscopia. “Falta seguimento em tempo oportuno, temos muita dificuldade em marcar este exame complementar de diagnóstico”, explica Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal. A associação apoia mais de 5 mil doentes todos os anos, mas é, ainda assim, um número insuficiente quando morrem 11 pessoas por dia com esta doença.

O objetivo da UE — que disponibiliza cerca de €4 mil milhões aos Estados-membros para reforçarem as suas estratégias nacionais — é garantir uma taxa de 90% de cobertura nos mencionados seis rastreios. Para isso, acreditam os especialistas portugueses, é preciso retirar burocracia aos procedimentos, melhorar a comunicação entre cuidados primários e secundários, mas também reforçar o número de profissionais de saúde e apostar na digitalização da saúde. “Há uma enormíssima necessidade de investimento para que os profissionais não fiquem presos a processos administrativos”, diz Júlio Oliveira, que apesar das dificuldades vê o SNS a caminhar na direção certa, em especial com a nova direção-executiva liderada por Fernando Araújo.

Articulação: garantir o funcionamento do sistema de saúde em rede é, para os peritos, essencial para melhorar a prestação de cuidados. No debate da iniciativa PHSSR participaram Nuno Jacinto (Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar), Marta Pojo (Liga Portuguesa Contra o Cancro), Teresa Machado Luciano (Hospital Garcia de Orta), Vítor Neves (Europacolon) e, por videochamada, José Dinis (Programa Nacional para as Doenças Oncológicas) e Júlio Oliveira (IPO do Porto) 
Jose Fernandes

Medidas para ter saúde de porta aberta

Trabalho em rede

Entre as 43 recomendações dos peritos auscultados pelo PHSSR, a coordenadora nacional do projeto destaca a importância da “integração de cuidados no sistema”, coordenação intersectorial e melhores protocolos de referenciação de doentes. “É também essencial que haja parcerias entre os sectores público, privado e social”, assinala.

Prevenção é chave

Mónica Oliveira aponta ainda a necessidade de investimento em “rastreio e diagnóstico precoce”, bem como em campanhas de literacia e promoção da saúde na população. Aposta nos cuidados primários é crucial, embora sujeita a contratualização de objetivos para a diminuição da carga de doença.

Avaliar resultados

Especialistas ouvidos consideram que “o desenvolvimento de métricas baseadas na comunidade e nos outcomes em saúde” devem estar ligados aos incentivos atribuídos aos serviços, de forma a monitorizar o progresso e permitir correções nas estratégias definidas para cada região.

Sustentabilidade do SNS

Depois das 43 recomendações feitas pelos peritos à Parceria para a Sustentabilidade e Resiliência dos Sistemas de Saúde e do primeiro debate “Das recomendações à concretização da mudança”, esteve agora em análise a “Sustentabilidade e Resiliência do Sistema de Saúde Português” na segunda conferência organizado pelo Expresso com o apoio da AstraZeneca.

Textos originalmente publicados no Expresso de 23 de junho de 2023

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