Investigar é uma prova de resistência

Inovação: Portugal tem massa cinzenta de excelência da neurologia à oncologia. Mas a maioria da investigação que existe é resultado de uma “força de vontade tremenda dos médicos nas suas horas vagas”
Inovação: Portugal tem massa cinzenta de excelência da neurologia à oncologia. Mas a maioria da investigação que existe é resultado de uma “força de vontade tremenda dos médicos nas suas horas vagas”
Francisco de Almeida Fernandes
Jornalista
Este pequeno país no extremo ocidente da Europa é com frequência notícia internacional pelos feitos alcançados em diferentes áreas da sociedade. Do desporto à ciência, Portugal tem provado, sucessivas vezes, que o tamanho pouco importa quando há qualidade no saber fazer. Quando o tema é a investigação aplicada à prática médica, a presidente da Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB) não tem dúvidas de que “temos muito boas condições para sermos competitivos” em áreas como a cardiologia, neurologia, oftalmologia ou oncologia. “São exemplos de quatro áreas em que temos um potencial enorme”, aponta a também neurologista com carreira de investigadora Catarina Resende de Oliveira.
O leque de argumentos que defende a capacidade nacional para dar cartas nestes domínios da saúde resume-se à excelência do diagnóstico e dos profissionais “diferenciados e muito bem preparados” que, a par de um número de doentes relevante, cria um ambiente propício à inovação. As vantagens deste tipo de investigação, que parte do conhecimento científico e procura aplicá-lo à prática clínica, são, consideram os especialistas ouvidos pelo Expresso, evidentes. Desde logo no estímulo intelectual dos médicos que se dividem entre o apoio aos doentes e a pesquisa, mas também, de forma muito palpável, na melhoria dos cuidados de saúde prestados à população com novas abordagens terapêuticas. “A inovação e a investigação é uma missão que a médio longo prazo traz benefícios às pessoas”, sublinha Miguel Castelo-Branco, coordenador científico do Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research (CIBIT), e o vencedor desta edição do Prémio Bial.
Corrida de obstáculos
A consciência das mais-valias da aposta na investigação clínica parece evidente no discurso público dos sucessivos governos, embora nem sempre tenha correspondência quando é preciso passar da teoria à prática. Em 2018, o Governo anunciava a criação da AICIB precisamente para promover a atividade nas ciências biomédicas, um projeto que só veio a concretizar-se no início de 2020, já com uma pandemia à porta. Porém, o organismo fundado por parceiros públicos e privados — Infarmed, Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Apifarma e Health Cluster Portugal (HCP) — que deveria ter, em 2022, um orçamento próximo de €20 milhões, teve, na realidade, €750 mil para cumprir a missão de tornar Portugal competitivo nesta área. O desafio, explica Catarina Resende de Oliveira, prende-se com a falta de capacidade financeira evocada pela Apifarma e HCP para cumprirem com os 50% com que estão comprometidos. “Como eles não têm e o financiamento é equitativo [entre público e privado], os fundadores públicos argumentam que não colocam a sua parte” enquanto o privado não o fizer.
A premiada investigadora diz, no entanto, que a agência tem conseguido apoiar alguns projetos de pequena dimensão com os recursos a que tem acesso. No ano passado estima ter investido “mais ou menos €150 mil” entre os Prémios AICIB, seis bolsas dirigidas à medicina geral e familiar nos cuidados de saúde primários e seis bolsas no campo da oncologia. Reconhece, contudo, que a capacidade para financiar projetos de investigação clínica fica muito limitada pelos constrangimentos orçamentais, que a instituição está a tentar contornar por via de fontes de financiamento alternativas em projetos comunitários.
Manuel Sobrinho Simões, eleito o patologista mais influente do mundo em 2015, considera que além da falta de dinheiro, um dos principais obstáculos ao desenvolvimento da inovação está na falta de tempo protegido para os médicos poderem dedicar-se à investigação. “Os profissionais de saúde estão muito sobrecarregados com a atividade assistencial, que é importantíssima, mas devem ter tempo para a investigação, para o ensino e treino dos mais jovens”, defende o presidente do júri do Prémio Bial de Medicina Clínica (ver caixa com os projetos distinguidos). A neurologista Teresa Coelho, do Hospital de Santo António, e vencedora deste galardão em 2018, garante que “hoje nem sequer iniciaria o trabalho que foi premiado”, pela “falta de condições de trabalho dos clínicos no SNS”. Apesar de reconhecer elevada capacidade intelectual em Portugal, diz-se “desanimada” com a realidade da investigação clínica no país.
Esforço sobre-humano
À margem da cerimónia do Prémio Bial de Medicina Clínica 2022, que decorreu quarta-feira na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), Altamiro da Costa Pereira diz que muita da investigação que existe é resultado de uma “força de vontade tremenda dos médicos nas suas horas vagas”, mas que “muitos desistem e vão para fora do país”. O diretor da FMUP lamenta a falta de prioridade dada pelos Ministérios da Ciência e da Saúde a este campo do conhecimento e pede mais investimento na articulação entre academia, cuidados de saúde e institutos de investigação. Ainda durante o evento, Marcelo Rebelo de Sousa assinalou a importância de iniciativas como a promovida pela Fundação Bial para o incentivo à inovação e lembrou que “estes prémios fazem sentido por mudarem a vida de pessoas concretas”. “Não há clínica médica que não se baseie numa muito sólida investigação fundamental e não há investigação fundamental que se possa satisfazer só por si”, reforçou.
As estimativas apontam para que em Portugal uma em cada mil crianças em idade escolar sofra de autismo. Miguel Castelo-Branco, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, tem dedicado o seu percurso enquanto investigador à procura de respostas terapêuticas inovadoras. O especialista é pai de um jovem com autismo, facto que influenciou a dedicação aplicada à investigação básica e clínica na área do neurodesenvolvimento ao longo de 15 anos. O projeto, agora premiado pela Fundação Bial no valor de €100 mil, baseou-se na ligação entre a biologia molecular, a imagiologia cerebral e a neurociência cognitiva e promoveu ensaios clínicos para melhorar o reconhecimento de emoções, a regulação emocional e a ansiedade no autismo. “O trabalho confirmou que para compreender e reabilitar melhor o autismo é preciso ter em conta marcadores neurobiológicos que permitam caracterizar melhor a neurodiversidade, de forma a concretizar abordagens de medicina personalizada e de precisão”, explica o autor. Para isso, aponta o também médico, foi “crucial” contar com “equipas multidisciplinares”.
A neurocirurgiã Cláudia Faria, do Hospital de Santa Maria, conquistou uma menção honrosa, no valor de €10 mil, pela produção de conhecimento científico sobre os tumores cerebrais. Através da criação de um banco de tumores cerebrais, que inclui amostras de cerca de dois mil doentes, a também investigadora no Instituto de Medicina Molecular (iMM) criou a Brain Tumor Target. Trata-se de uma plataforma centrada no doente para simular a doença e testar modelos e terapias inovadoras para a medicina personalizada. “Os tumores cerebrais malignos continuam a ser uma importante causa de morbilidade e mortalidade em crianças e adultos, por isso estas descobertas, após validação em ensaios clínicos em doentes, podem contribuir para a melhoria da sua sobrevida e qualidade de vida”, contextualiza Cláudia Faria. A plataforma permite uma visão 360° dos tumores com a análise do material biológico, dos dados clínicos e de anatomia patológica, assim como a criação dos modelos de simulação de doença. O trabalho culmina na descoberta de biomarcadores ou novos tratamentos que podem ser aplicados ao doente em ensaio clínico.
A colaboração entre a Universidade Eduardo Mondlane e a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto foi essencial para que, ao longo de 25 anos, os investigadores, coordenados pelo cardiologista Albertino Damasceno, reunissem uma pesquisa alargada sobre hipertensão arterial em Moçambique. O objetivo passou pela identificação de fatores determinantes para suportar medidas preventivas e terapêuticas que permitam a redução da morbilidade e mortalidade associadas à doença. “Este trabalho poderá ajudar a individualizar estratégias de prevenção, diagnóstico e tratamento da tensão arterial para muitos portugueses ou imigrantes de origem africana em Portugal”, explica Albertino Damasceno. A patologia é o principal fator de risco para a insuficiência cardíaca, o acidente vascular cerebral e a cardiopatia, o que reforça a importância do estudo realizado. O prémio de €10 mil reconhece, assim, o esforço da equipa que inclui os investigadores Jorge Polónia, Nuno Lunet, António Prista, Carla Matos e Neusa Jessen.
“Ouvimos aqui uma preocupação de ponte entre a investigação fundamental, a clínica médica e a medicina personalizada. E essa é a finalidade de toda a ciência”
Marcelo Rebelo de Sousa
Presidente da República
“Ao longo dos últimos quase 40 anos tivemos muitos dos mais notáveis médicos e investigadores portugueses a concorrer e alguns deles a serem distinguidos”
Luís Portela
Presidente da Fundação Bial
“Temos de colaborar (entre instituições). Precisamos de mais exemplos do saber fazer, como fazer e de uma melhor organização”
Manuel Sobrinho Simões
Investigador e presidente do júri
Repensar a Saúde
O galardão que incentiva a investigação médica com aplicação prática — atribuído bianualmente pela Fundação Bial, ao qual o Expresso novamente se associa — concedeu este ano um valor monetário de €100 mil ao projeto vencedor. Desde 1984, o Prémio Bial de Medicina Clínica distinguiu 105 trabalhos entre perto de 700 candidaturas.
Textos originalmente publicados no Expresso de 10 de fevereiro de 2023
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