Seria preciso chegar ao ano 2157 para que a desigualdade salarial entre homens e mulheres já não fosse um assunto, aponta o Fórum Económico Mundial no “Global Gender Gap Report 2021”. Apesar de serem elas que compõem a maioria da população portuguesa e que ocupam a maior parte das cadeiras nas universidades, continuam a ser quem mais risco de pobreza enfrenta e quem recebe menos. Mais do que paridade de direitos, estas diferenças estão, defende Maria de Belém Roseira, a prejudicar a saúde feminina. “Esta situação da igualdade salarial é importantíssima”, garantiu durante a apresentação do documento estratégico “A Saúde da Mulher em Portugal”, esta semana, em Lisboa. Para a ex-ministra da Saúde, os “determinantes sociais e económicos” da população devem ser cada vez mais um tema prioritário para decisores políticos e públicos, “porque as nossas condições de vida determinam a saúde que iremos ter”.
Ao longo do evento, promovido pela Hologic e a que o Expresso se associou, representantes de sete áreas da medicina defenderam que, embora o acesso a cuidados de qualidade deva ser transversal a toda a população, existem particularidades da saúde da mulher que merecem uma abordagem personalizada. Essas diferenças são, em alguns casos, biológicas, mas sobretudo sociais e económicas. “Existem imensas famílias monoparentais e 80% são mulheres”, aponta Fátima Palma, presidente da Sociedade Portuguesa de Contracepção. O número, suportado por dados da Pordata, apoia o argumento de Maria de Belém sobre o impacto das condições de vida na qualidade da saúde das mulheres — com menos rendimento e maior sobrecarga ao nível das responsabilidades familiares, o tempo e o dinheiro disponíveis para a prevenção da doença são menores. É por isso que o grupo de especialistas coordenado pela ex-ministra considera fundamental que o Governo, a Assembleia da República e entidades como a Direção-Geral da Saúde adotem as suas recomendações e, a partir delas, criem um Programa Nacional para a Saúde da Mulher. “Ao melhorarmos a saúde das mulheres, estamos a melhorar a saúde de todos”, reforça Maria de Belém.
Saúde mental como eixo central
O documento agora divulgado dedica-se a cinco áreas da medicina, com o bem-estar psicológico a ser uma das prioridades da reflexão dos peritos. E há boas razões para isso, a começar na maior prevalência de patologias como a depressão nas mulheres. A psiquiatra Maria João Heitor justifica com fatores sociais, económicos e biológicos que se manifestam desde cedo. “A partir dos 13 anos, as raparigas começam a sentir menor satisfação com a vida e a [ter] perceção de uma saúde mental mais pobre”, exemplifica. O Índice de Igualdade de Género 2021 mostra que, quando se lhes deparam problemas do foro psicológico, 49% das mulheres não conseguem pagar despesas com consultas e outros cuidados nesta área — nos homens, o valor desce para os 42%. A também presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental pede mais “prevenção da doença” e recursos, dentro do SNS, que estejam acessíveis às cidadãs de todo o país, algo que considera que não acontece nos dias de hoje. Eliminar o fosso social e económico entre géneros é, defende este grupo de trabalho, o primeiro passo para construir um futuro em que homens e mulheres podem ter o mesmo nível de qualidade de vida.
Lutar por melhores cuidados
Passou pelas pastas da Saúde e da Igualdade e, desde aí, Maria de Belém tem sido uma voz ativa na defesa dos direitos no feminino. A ex-ministra foi a coordenadora do grupo de trabalho para “juntar todos os contributos” das doenças reumáticas às cardiovasculares, sem esquecer a saúde mental ou a oncologia. Objetivo é contribuir “para a literacia das mulheres”, mas também apoiar os decisores políticos que encontram neste documento uma base para o que pode vir a ser um Programa Nacional para a Saúde da Mulher. Maria de Belém espera que os poderes público e político possam adotar as recomendações e avisa que a falta de recursos não é desculpa para não avançar. “Não é por termos poucos recursos que temos de continuar a fazer as coisas como não devem ser feitas”, diz.
3 Medidas para o futuro
Saúde sexual
Contraceção Atualização da lista dos métodos disponibilizados às mulheres deve ser uma prioridade para garantir uma escolha livre e adequada a cada pessoa, defende o grupo de trabalho. Em simultâneo, o acesso a estes meios tem de ser universal e transversal a todas as regiões do país para evitar assimetrias, já que nem todos estão a “ser disponibilizados gratuitamente” pelo SNS. O mesmo raciocínio é aplicado à interrupção voluntária da gravidez, que precisa de ter mais “locais de consulta” para que qualquer cidadã possa, se assim o pretender, optar pelo aborto seguro.
Cardiologia
Disparidade Em Portugal, 30% de todas as causas de morte devem-se a doenças cardiovasculares, mas é entre as mulheres que estas patologias tiram mais vidas — 33% contra 21% nos homens. Além de pedir aposta na literacia, o documento dos peritos sugere “pesquisa sistemática” de situações ginecológicas associadas a risco cardiovascular em pessoas “jovens e saudáveis” nas consultas de medicina geral e ginecologia. Aumentar a representatividade feminina em estudos clínicos nesta área é, também, uma das medidas apresentadas para reduzir o número de vítimas.
Oncologia
Mais prevenção Entre as mulheres, as doenças oncológicas ligadas à mama, ao endométrio e ao colo do útero são as três mais frequentes. Especialistas querem que os tempos de resposta a um diagnóstico sejam mais reduzidos para aumentar a probabilidade de sucesso no tratamento, mas também que sejam eliminadas as “assimetrias regionais nos rastreios populacionais”. A longa lista de recomendações inclui uma reivindicação antiga de associações como a EVITA: o acesso ao diagnóstico genético de cancro e o aumento de meios hospitalares para este efeito. Não menos importante é o investimento em investigação oncológica no SNS e permitir aos médicos a conciliação, de forma equilibrada, de tempo para investigação e para a prestação de cuidados.
A Saúde das Mulheres em Portugal
De Belém para São Bento. Um grupo de especialistas e representantes de entidades científicas — coordenado por Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde — realizou um estudo sobre a “Saúde das Mulheres em Portugal”. O Expresso juntou-se à Hologic para a apresentação das recomendações dirigidas aos decisores políticos.
Textos originalmente publicados no Expresso de 2 de dezembro de 2022
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