O longo caminho até chegar ao trabalho

Inclusão: há instituições que ajudam, mas como integrar melhor na sociedade mais de 100 mil pessoas com demências? Os especialistas dizem que ter uma atividade profissional é decisivo
Inclusão: há instituições que ajudam, mas como integrar melhor na sociedade mais de 100 mil pessoas com demências? Os especialistas dizem que ter uma atividade profissional é decisivo
Uma queda de cavalo atirou Luís Godinho Lopes para um coma profundo, sem prognóstico. Na altura com 29 anos, o filho do ex-presidente do SPC partilhava o quarto do hospital com quase 10 pessoas vítimas de traumatismos cranioencefálicos. Um vidro separava-o dos pais, cuja angústia era vivida do lado de fora, sem possibilidade de contacto com o filho, que teve um acidente durante um jogo de horseball, em Cascais. Foi deste cenário — e da resiliência da família — que nasceu a Novamente, uma associação que visa ajudar famílias e vítimas a recuperar dos traumas causados pelas sequelas: Luís era um jovem saudável e com projetos quando a vida lhe trocou as voltas. Hoje, 12 anos depois, continua em recuperação.
Lançada em 2010, pouco depois do acidente, a associação tem um propósito firme: “Estabelecemos como eixos fundamentais o auxílio aos doentes, diagnósticos e apoio às famílias”, conta Rita Barbosa, angariadora de fundos da Novamente, cuja organização foi uma das contempladas pelos Prémios BPI Fundação “La Caixa” Capacitar, destinados a apoiar projetos que melhorem a qualidade de vida das pessoas com deficiência, doença mental ou outras doenças, bem como das suas famílias, com especial enfoque na sua autonomia, empregabilidade e bem-estar. Criado em 2010, este prémio já atribuiu €7,6 milhões a 252 projetos. Na edição deste ano, cujas inscrições terminaram no fim de março, foi atribuído um total de €1 milhão, destinados a 24 diferentes projetos na área da saúde mental.
Reintegração de pessoas com doença mental, criação de emprego protegido, desenvolvimento de novas competências, capacitação de pessoas com défice cognitivo, apoio aos cuidadores, promoção da autonomia — o espetro do Capacitar é alargado e abrange todo o território nacional. Para muitas destas associações o apoio do terceiro sector tem-se revelado fundamental, num trabalho tantas vezes desenvolvido por voluntários. “Há certos apoios destinados a pessoas em fase de cuidados pré-paliativos, mas também projetos que promovem a empregabilidade, certo tipo de emprego em função da idade e do problema de saúde”, diz o sociólogo António Barreto, membro do júri, que lembra a existência de um especial foco nos projetos “que incluam uma linha de progressão de empregabilidade. É um trunfo que ajuda a definir o premiado”.
Desde que foi criada, a Novamente já apoiou mais de 600 famílias. O caso de Luís continua a merecer a atenção dos técnicos de reabilitação em vários programas que a associação promove. Hoje já consegue vestir-se sozinho, teve explicações de matemática para desenvolver raciocínios lógicos, faz hipoterapia, hidroterapia e psicoterapia. No dia em que o Expresso acompanhou uma das ações da instituição, um grupo preparava-se para se fazer ao Tejo, onde pratica canoagem.
O prémio foi um empurrão para o projeto Formar a Cuidar, destinado à capacitação de cuidadores de pessoas vítimas de traumatismo cranioencefálico, com vista a ajudar no processo de empregabilidade. Sublinhando que o apoio domiciliário é fundamental, António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, refere que o trabalho assume especial preponderância na inclusão e desenvolvimento de vítimas e famílias. “Nas demências é muito difícil ter acesso ao trabalho, mas em relação às deficiências temos boas práticas de jovens que trabalham como repositores, jardineiros, em call centers.” Questionado sobre o papel das empresas na integração destes doentes, afirma: “Hoje não estão completamente alheias ou insensíveis a estas questões. Até porque há incentivos fiscais. Mas é um caminho longínquo, que ainda estamos a percorrer.”
Existe uma “falsa crença” de que a degeneração cognitiva é uma inevitabilidade do envelhecimento
Segundo estimativas da Alzheimer Europe, Portugal tem atualmente cerca de 193 mil pessoas que sofrem de algum tipo de demência. Mas, avançando no tempo, as perspetivas estão longe de serem otimistas: com o envelhecimento global da população, estima-se que, em 2050, 152,8 milhões de pessoas possam vir a sofrer de algum tipo de demência.
Ainda assim, segundo diz Alexandre de Mendonça, investigador coordenador e professor catedrático convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, é possível atuar “no sentido de prevenir o declínio cognitivo associado ao envelhecimento”.
Para isso será preciso atenuar o preconceito que ainda prevalece na sociedade portuguesa e desmontar a “falsa crença” de que estas doenças fazem parte natural do processo de envelhecimento.
“Julgo que as necessidades têm sido crescentes nos últimos anos. Olhando para trás, desde o período da troika, as dificuldades económicas recentes, as implicações da guerra, tudo o que aconteceu nos últimos anos tem feito aumentar as necessidades sociais. O Estado vai respondendo. O problema é que a resposta pública demora, atrasa. O Estado, em geral, tem pouca resposta rápida”, acrescentou António Barreto.
PROJETO SOLIDARIEDADE
O Expresso associa-se pelo quarto ano consecutivo ao BPI//Fundação “la Caixa” para debater os desafios da solidariedade, do terceiro sector, das instituições que apoiam a infância, os jovens, os adultos, os seniores e as pessoas com deficiência.
Textos originalmente publicados no Expresso de 4 de novembro de 2022
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