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“A globalização morreu.” Viva o que é local

Mundo. As trocas comerciais deixam de ser globais: países preferem garantir produção autossuficiente. Em contraste, o trabalho é cada vez mais disperso geograficamente

Fátima Ferrão

Incerteza será, provavelmente, uma das palavras mais proferidas por políticos, economistas e gestores desde o início deste ano. Com o mundo ainda a braços com uma pandemia que, ao longo de dois anos e meio, deixou o seu rasto de mudança num conjunto de pressupostos que eram tidos como garantidos, o ano de 2021 terminou com disrupções ao nível das cadeias logísticas, com os primeiros sinais de uma crise energética que veio a agravar-se no primeiro trimestre do novo ano e com a inflação a bater sucessivos recordes em mais de 30 anos. A esta ‘tempestade’ quase perfeita, juntou-se uma guerra na Europa e o decréscimo da, até então, pujante economia chinesa. “O movimento em direção a uma crescente integração económica global está a ser fortemente questionado, com consequências para as empresas, os seus trabalhadores e as respetivas economias”, afirmou António Nogueira Leite. O economista falava à margem da conferência Parar para Pensar, em que o tema da globalização serviu de arranque à terceira edição do projeto promovido pelo Expresso com o apoio da Deco Proteste. Neste mundo em mudança, aspetos de natureza política e geoestratégica pesam cada vez mais nas decisões de investimento e de internacionalização das empresas. “Pelo menos nos próximos anos”, acredita António Nogueira Leite.

Desde 2020, e com a dificuldade em garantir a entrega de produtos com origem noutros continentes, empresários e Governos aperceberam-se de que a globalização tornara as cadeias de abastecimento demasiado extensas e complexas em nome do preço. Uma situação incomportável em momentos de crise e que abriu as portas para impor um travão à globalização — que já vinha sendo posta em causa com o argumento da sustentabilidade e do impacte ambiental —, para adotar medidas protecionistas. Os Governos, explica o economista, ainda que continuando os seus esforços de atração de investimento direto estrangeiro, “têm contribuído direta e indiretamente para a evolução recente, ao admitir mais restrições ao comércio, e expressando a sua preocupação quanto à autonomia energética, alimentar ou de acesso a tratamentos e medicamentos”. Este cenário cria novos desafios às empresas que têm de mover-se neste contexto, com o qual ainda estão pouco familiarizadas, e alterar as suas estratégias e práticas em conformidade.

Menos comércio global e dinheiro mais caro

Infografia: Carlos Monteiro

Com os preços das matérias-primas a pesar cada vez mais no bolso dos empresários, este movimento de bloqueio é inevitável. Nelson Pires não tem dúvidas de que “a globalização morreu”. Para o diretor-geral da Jaba Recordati, a Europa e provavelmente alguns países do Norte de África constituirão um bloco. No entanto, salienta que este bloco tem que reindustrializar-se, desenvolvendo uma indústria de valor acrescentado. “E esse é o grande desafio”, reforça. As organizações terão que trocar o modelo de offshoring (produção longínqua a baixo custo), pelo nearshoring. “Não acredito que cheguem ao onshoring, pois cada organização e país teria de ser autossustentável”, diz Nelson Pires.

O segredo para que a Europa consiga tirar partido de um modelo de produção de proximidade passa, na opinião do responsável da Jaba Recordati, por garantir o equilíbrio entre um custo de produção baixo, acrescentando valor através da inovação, e apostando no e-commerce para satisfazer os consumidores que procuram uma resposta rápida às suas necessidades.

Sistema favorece o ‘não trabalho’

Segundo o estudo Talent Shortage Survey 2022, realizado pelo ManpowerGroup, 85% dos empregadores nacionais têm dificuldade em preencher as vagas que lançam para o mercado. Este valor posiciona Portugal acima da média global, que se encontra nos 75%, mas também como o segundo país do mundo onde os empregadores têm mais dificuldade na contratação, estando apenas abaixo de Taiwan (88%).

Na indústria têxtil, José Pedro Barros Amorim sente esta escassez, que relaciona com a desadequação das competências face às necessidades atuais, mas também com “um sistema que favorece o não trabalho”. Na perspetiva do sócio fundador da Triwool, a carga horária, o trabalho por turnos ou os contratos precários continuam a afastar os trabalhadores, que preferem não trabalhar. “Seria importante diminuir o apoio a quem não trabalha. São milhares de pessoas que fazem falta, mas que não comparecem”, aponta, aproveitando para deixar algumas recomendações ao Governo. “O Estado leva demasiado dinheiro sem dar o suficiente em troca. É preciso isentar as horas extra ou reduzir a carga fiscal, ou baixar os impostos às empresas e entregar esses valores aos empregados”, sugere.

Mas noutros sectores a escassez de trabalhadores tem hoje outras formas de ser combatida. Na opinião de Rui Teixeira, a digitalização e o seu impacto no mundo do trabalho permitiram alargar as bases de talento. “Com a adoção de modelos remotos, a presença dos colaboradores nos escritórios passou a não ser considerada como um critério-chave de seleção, abrindo a porta à implementação de estratégias globais de atração de talento”, refere o diretor-geral do ManpowerGroup Portugal. Os trabalhadores, por seu lado, perceberam que era possível adotar outros modelos de trabalho, que permitem uma melhor conciliação entre vida pessoal e familiar, mais autonomia, responsabilização e flexibilidade. “E não estão dispostos a perder essa liberdade conquistada”, acredita Rui Teixeira.

Neste contexto, o grande desafio para as empresas passa por saber atrair os melhores e, para Sara Midões, parte desta atratividade traduz-se, não em boas condições salariais, mas no conjunto de benefícios elencados por Rui Teixeira, ao qual acrescenta a identificação com o propósito da organização ou a preocupação que esta demonstra com o bem-estar e a saúde mental das suas equipas. A professora do ISCSP e especialista em liderança positiva e comunicação empática defende também que esta preocupação começa a ser encarada pelas empresas como uma estratégia para melhorar a produtividade e o envolvimento. No estudo que coordenou em outubro de 2021 concluiu que 77% das lideranças inquiridas estavam muito conscientes da importância do equilíbrio dos seus colaboradores, mas diz-se surpreendida por apenas 16% sentirem necessidade de controlar o stresse e a ansiedade das equipas. “São dados que apontam a urgência de formar as lideranças para que ganhem consciência da importância do bem-estar e da saúde mental para um ambiente produtivo nas organizações.”

Novos desafios e competências no trabalho

Infografia: Carlos Monteiro

Negócios mais próximos, trabalho à distância

O mundo globalizado está a mudar e a caminho de uma provável ‘blocalização’. O tema e os seus desafios estiveram em debate na conferência Parar para Pensar: Globalização, em que participaram António Nogueira Leite, economista, Nelson Pires, da Jaba Recordati, e Sandra Balão do ISCSP.

Mas as mudanças provocadas pela pandemia afetaram também o paradigma do trabalho, mais remoto e com trabalhadores mais exigentes. A escassez de recursos e as novas competências são enormes desafios. O debate Parar para Pensar: Trabalho juntou Rui Dias Teixeira, da ManpowerGroup, Bruno Horta Soares, da IDC Portugal, Hélder Sousa Silva, presidente da Câmara Municipal de Mafra, e Patrícia Adegas, da Novartis

Parar Para Pensar

Junho e julho são os meses que marcam o regresso do projeto Parar para Pensar, organizado pelo Expresso com o apoio da Deco Proteste. Este ano, o ciclo de conferências inclui temas como globalização, trabalho, mobilidade, inovação, saúde e media. Acompanhe os debates no online e veja as análises aos temas no semanário.

Textos originalmente publicados no Expresso de 9 de junho de 2022

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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