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mRNA, a arma que está a revolucionar a saúde

Entrega do Prémio Bial em Biomedicina 2021. © Nuno Fox
Entrega do Prémio Bial em Biomedicina 2021. © Nuno Fox

Inovação. Do coração às doenças autoimunes, o potencial desta biotecnologia vai muito além do combate à covid-19. “Estamos perto de novas grandes descobertas”, diz Maria do Carmo Fonseca

Sem os avanços da ciên­cia este texto não seria escrito através de um computador e não chegaria ao leitor em suporte digital. Outra magnitude: sem ciência não existiria uma esperança média de vida fixada em 81 anos em Portugal. E, sobretudo, sem ciência o mundo não estaria hoje a discutir o abrandamento da pandemia que há dois anos colocou milhares de milhões de pessoas em casa, fechadas, assustadas e, em muitos casos, doentes. “A aposta em ciência é absolutamente fundamental. E tem de o ser a todos os níveis, desde a ciência básica à ciên­cia aplicada”, aponta ao Expresso a engenheira bioquímica Raquel Fortunato. O RNA mensageiro (mRNA), molécula responsável por transmitir uma mensagem genética que instrui o sistema imunitário a produzir determinadas proteínas, é um caso evidente da relevância da inovação científica. “Na minha perspetiva, trata-se de um excelente exemplo da importância de investir em investigação científica de forma continuada em todos os países”, complementa a presidente do Instituto de Medicina Molecular (IMM), Maria do Carmo Fonseca.

Embora a covid-19 tenha empurrado esta biotecnologia para a ribalta, por ter permitido desenvolver uma resposta em tempo recorde, a verdade é que a exploração do mRNA não começou em 2020, mas décadas antes. Hoje aponta-se a mira à criação de terapêutica para outras patologias, que motiva a curiosidade de cientistas como Uğur Şahin e Özlem Türeci, fundadores da BioNTech. Em 2017, assente em anos de estudo, foi publicado o projeto “Zika vírus protection by a single low-dose nucleoside-modified mRNA vaccination”, vencedor do Bial Award in Biomedicine 2021, no valor de €300 mil. A intenção dos autores era mostrar a capacidade de uma vacina mRNA no combate à epidemia do vírus Zika. O trabalho, liderado pelos investigadores Drew Weissman e Katalin Karikó, tem o mérito de “ter formado as bases para as vacinas atual­mente administradas para combater a pandemia de covid”, sublinhou o representante do júri. O neurocientista Menno Witter considerou ainda, durante a cerimónia organizada pela Fundação Bial, com apoio do Expresso, que a experiência dos últimos dois anos mostrou que “as vacinas de RNA mensageiro são seguras, eficazes e podem ser trabalhadas para muitas doenças”. São precisamente estas últimas palavras do especialista que abrem a janela de esperança para a aplicação desta plataforma biotecnológica ao tratamento, ou mesmo cura, de muitas outras patologias. Sobre este horizonte, o investigador Miguel Prudêncio admite observar o potencial “com enorme entusiasmo, expectativa e esperança”.

Código salva-vidas

Se é certo que o ADN é o código-fonte que guarda as características genéticas de cada ser vivo, o RNA mensageiro transmite essa informação e, através dela, ordena a produção de uma determinada proteína. É na capacidade de codificar a ordem dada que está o potencial desta biotecnologia. “O que estamos a fazer é dar ao corpo a instrução para passar a produzir uma coisa que normalmente não produziria e da qual precisa”, explica Raquel Fortunato. A CEO da GenIbet — empresa spin-off do iBet e entretanto adquirida pela sueca Recipharm — acredita, por isso, que alargar a aplicação do mRNA a outras doenças é apenas “uma questão de encontrar os alvos certos e trabalhar para eles”. “O potencial é enorme para tudo o que são terapias para doenças raras. Para esse tipo de doenças acho que não é um sonho, não consigo ver por que motivo não há de funcionar”, afirma.

O norte-americano Drew Weissman, apoiado por mais 36 investigadores, reconhece não ter antecipado “todas as possibilidades do mRNA”. Porém, desde o sucesso dos ensaios da vacina para o vírus Zika, o cientista começou “a trabalhar em todas as doenças infecciosas imagináveis”, procurando replicar o sucesso. “Não me conforto nem descanso nos louros. Estou sempre a avançar em direção à próxima doença, à próxima vacina, à próxima terapêutica. Esta é a forma como penso”, esclareceu perante a plateia que assistia na Reitoria da Universidade de Lisboa. Apesar de se referir ao contributo científico com humildade, Weissman não tem dúvidas de que “as consequências deste manuscrito são imensas”.

Desde logo pela utilização desta plataforma para a criação de vacinas de resposta imediata ao SARS-CoV-2, mas sobretudo por aquilo que o futuro reserva — a eventual utilização em doenças como o VIH, o cancro ou a malária, mas não só. “Estamos a trabalhar numa vacina que vai prevenir as alergias a amendoins e numa outra para o cancro, para doenças autoimunes e para muitas outras”, partilhou com entusiasmo na voz.

Miguel Prudêncio, que lidera um laboratório no IMM, conhece bem as dificuldades na criação de terapêuticas para a malária, doença a que se tem dedicado nos últimos anos, com avanços assinaláveis. Para o investigador, a mudança que ocorreu com a covid-19 foi o facto de as vacinas mRNA validarem “aquela tecnologia a uma escala e com uma solidez porventura inimagináveis”, abrindo caminho a “novas terapias e vacinas”, que podem, de facto, “fazer a diferença na sociedade e na vida”.

A especialista Maria do Carmo Fonseca, responsável por um projeto relacionado com problemas cardíacos (ver caixa), aponta ainda os “resultados muito promissores com estratégias completamente inovadoras para tratar a esclerose múltipla e o enfarte do miocárdio”, que têm sido recentemente publicados nas principais revistas científicas internacionais. “Estou muito confiante em que estamos perto de novas grandes descobertas”, perspetiva.

Por tudo isto, falar no RNA mensageiro como uma arma biotecnológica capaz de revolucionar a saúde não parece ser uma miragem, mas antes uma realidade cada vez mais próxima. “Temos hoje evidências de que esta tecnologia tem vastas aplicações. É uma façanha na biologia molecular focada na saúde humana”, observou o neurocientista Menno Witter, representante do coletivo do júri, em que participaram Maria do Carmo Fonseca e outros 11 membros de organizações científicas.

A importância da “pré-história da investigação” do mRNA

Marcelo Rebelo de Sousa, presente na cerimónia do Bial Award in Biomedicine — assim como Marta Temido, ministra da Saúde, e Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa —, considerou o projeto liderado por Weissman e Karikó uma demonstração da importância da “pré-história da investigação” do mRNA. É, aliás, este trabalho preliminar que contraria os argumentos que o Presidente da República considera “negacionismos” sobre a segurança das vacinas covid por, alegadamente, terem sido desenvolvidas demasiado rápido. “Este trabalho é prova de que as vacinas de mRNA para a covid-19 não apareceram de repente com a pandemia, mas que são o culminar de longos anos de investigação prévia”, concorda a presidente do IMM em resposta ao Expresso. “Nada como a pandemia para reconhecer, aos poucos, a importância da ciência”, apontou Marcelo.

Em busca da cura para a morte súbita

Os mistérios que a ciência encerra em si mesma são ainda muitos e continuam a motivar o interesse de investigadores em todo o mundo. Em Portugal, Maria do Carmo Fonseca, vencedora do Prémio Pessoa atribuído pelo Expresso em 2010, é considerada a principal autoridade científica no que ao RNA mensageiro (mRNA) diz respeito. Tem dedicado anos de trabalho a tentar compreender o funcionamento desta molécula e, mais concretamente, o seu papel na eventual correção do erro genético que provoca a cardiomiopatia hipertrófica. A doença é uma das responsáveis pela morte súbita e não tem, até hoje, cura conhecida. Foi, aliás, em 2004 que o mundo assistiu ao que ficaria na memória como um acontecimento chocante e inesperado — a morte, em direto e no relvado, do futebolista Miklos Fehér.

Por se tratar de uma doença cardiovascular hereditária com consequências graves, os jovens atletas são normalmente sujeitos a testes genéticos. Porém, estes exames não detetam o erro genético em 30% a 60% dos casos. Maria do Carmo Fonseca, que lidera o laboratório RNA e Regulação Génica no Instituto de Medicina Molecular (IMM), é responsável por um projeto que procura oportunidades de diagnóstico e tratamento para a doença através daquilo a que se chama RNA splicing. De forma simplificada, este processo procura corrigir as instruções dadas pelo RNA mensageiro às proteínas, que, se bem-sucedido, pode permitir às células cardíacas funcionar corretamente. O projeto é financiado em quase um milhão de euros até 2023. “Pretendemos aumentar o conhecimento sobre o papel do splicing do mRNA no funcionamento da célula cardíaca e desenvolver a primeira terapia de RNA que poderá prevenir a morte súbita”, atesta.

Frases da cerimónia

“Não pensámos em todas as coisas que podemos fazer com o RNA mensageiro. Estamos a trabalhar verdadeiramente em todas as doenças infecciosas imagináveis”

Drew Weissman
Investigador e vencedor do Bial Award in Biomedicine 2021

“Desejamos contribuir para os seres humanos se conhecerem melhor e, assim, poderem realizar-se na construção de um mundo mais equilibrado”

Luís Portela
Presidente da Fundação Bial

“É notável que o artigo tenha sido publicado em 2017, antes de a covid existir, e esteja escrito num tom humilde, que não especula sobre aplicações mais amplas”

Menno Witter
Neurocientista e representante do júri

Textos originalmente publicados no Expresso de 25 de fevereiro de 2022

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