Projetos Expresso

Eles sabem o que é lutar e vencer uma doença rara

Projetos Expresso. Sobreviventes. Enfrentaram uma doença que desconheciam e ainda lidam com as marcas que o combate lhes deixou, mas sentem que agora têm uma nova oportunidade de vida. As histórias de determinação e superação de Ana, Lígia e Pedro

Eles sabem o que é lutar e vencer uma doença rara

Tiago Oliveira

Jornalista

Ana Paula Carvalho, de 67 anos, não precisa de se esforçar para apontar o primeiro instante em que se apercebeu de que algo não estava bem com o seu corpo. “Foi de um momento para o outro, num fim de semana prolongado no Porto.” Estávamos em 2006 quando, no final de uma sessão de cinema, se virou para o marido e disse-lhe que sentia “uma dor esquisita”. No dia seguinte acordou “com uma hemorragia de todo o tamanho”. Uma ecografia realizada pouco depois mostrou que o endométrio — tecido que reveste internamente o útero — estava “completamente desfeito”. Seguiu-se uma bateria de exames, antes de uma operação em que finalmente foi detetada a fonte do problema: cancro.

Passados quase 15 anos, mais um cancro, desta feita da mama, e um caso positivo de covid-19, Ana Paula fala com a determinação de alguém que já passou por mais do que a maior parte das pessoas. A partir da sua casa em São João da Pesqueira, no “coração do Douro”, e do quarto onde aproveita para matar o vício da leitura, chega um relato contínuo de superação, só intervalado pelo ladrar do companheiro “Duke”, o Yorkshire Terrier do casal.

“Ter cancro foi como uma bofetada, para mim era morte”, relata Ana Paula, que teve de abandonar a carreira como professora do 1º ciclo para lidar com a doença rara (ver caixa). À operação seguiu-se a temida quimioterapia, “o que menos desejava”, e a fase em que tudo pareceu mais negro. “Era a primeira a entrar e a última a sair, como o carro-vassoura das bicicletas”, explica pausadamente. “Saía de lá completamente arrasada, com dores horrorosas. Não aguentava nada no estômago, não tinha posição, chegava a meio do corredor e ficava cansada.” Chegou a dizer ao marido “que ia morrer da cura”. Mas não só não morreu como foi buscar forças onde não sabia que as tinha. Sem esquecer os dias difíceis em que “olhava para o espelho” e não via quaisquer pelos no corpo.

Se esta luta fora vencida, a vida ainda reservaria a tal segunda batalha a Ana Paula, que em 2015 teve um cancro da mama. “Imagine como é que eu fiquei”, diz. Também o venceu, mas o “medo” de ter um “terceiro cancro” não desaparece, até porque recentemente teve de sofrer uma intervenção para retirar uns pólipos. A julgar pelo historial, não será tarefa fácil para o cancro. Ana Paula pede encarecidamente para deixar um agradecimento a todos os profissionais que a seguiram, em particular à dra. Maria Isabel Donas Botto. É a eles que deve a vida.

O marido também rapou o cabelo

Cancro do endométrio foi também o diagnóstico que Lígia Cleto recebeu em setembro do ano passado. “É sempre um choque. É daquelas coisas que pensamos que só acontece aos outros. Mas o que nos esquecemos é que nós somos os outros dos outros”, pondera a professora de Biologia, de 56 anos, que vive no Carregado.

Foi o marido que deu a notícia aos filhos, conta Lígia, para depois acrescentar que, mais do que ela, foi ele quem ficou revoltado com a situação. Com a quimioterapia concluída recentemente, a radioterapia já está no horizonte, e Lígia confessa que, apesar de tudo, considera-se “uma felizarda”, pois teve “efeitos secundários” mais leves do que pensava.

O que lhe custou mais foi mesmo a perda de cabelo, e aí nada como o apoio bastante literal que o marido decidiu dar-lhe. “No dia em que o rapei, ele também o fez”, revela. “Este acompanhamento familiar tem sido mais de meia cura”, considera. “Se quer que seja sincera, acho que ganhei mais do que perdi. Até com pessoas com quem reatei contacto.” E agora já olha para o regresso ao ensino, que foi a sua vida durante 33 anos. “Estou confiante desde o início”, atira. “Isto não vai vencer-me”.

A primeira lotaria

“Deixe-me só ir buscar as minhas notas”, diz Pedro Vieira a partir da sua casa em Carcavelos. “Nasci em Alcobaça e vim para Lisboa em 1974. Fui morar para o Bairro Alto, junto ao jornal ‘República’. Passei ali, de facto, uma época fabulosa”, recorda Pedro Vieira antes de falar sobre o assunto que, a partir de 2017, passou a estar presente na sua vida. Foi nesse ano que o seu médico de família achou estranhas as contínuas análises que todos os anos indicavam hemoglobina baixa e lhe pediu que fizesse uma biópsia, que resultou no diagnóstico de mieloma múltiplo. “Foi a minha primeira lotaria”, diz. Trata-se de um tipo raro de cancro que afeta com maior frequência a medula óssea e que, felizmente para Pedro Vieira, foi identificado numa altura em que “ainda estava adormecido”.

Por sua iniciativa, o funcionário do Instituto do Emprego e Formação Profissional, de 65 anos, foi munido de um dossiê para a Fundação Champalimaud para “obter uma segunda opinião”, sendo chamado poucos dias depois para iniciar um tratamento. “Nem hesitei”, garante. Durante esse período tentou continuar a sua vida, mas uma pneumonia particularmente agressiva não o permitiu. “Deixei de trabalhar, afetou o meu equilíbrio emocional”, revela.

O processo culminou com um transplante, e agora, entre o hábito de se levantar às 7h da manhã, as caminhadas que tenta que sejam diárias e o regresso digital ao trabalho, a vida segue o seu rumo. Está por retomar a escrita no seu blogue, mas tudo a seu tempo, até porque a experiência serviu para chamar-lhe a atenção para a necessidade de apostar mais na consciencialização e prevenção deste tipo de doenças, com a certeza de que podem contar com ele. “Tenho aqui uma responsabilidade social. Vou fazer o que me for possível”, afirma Pedro.

P&R

O que são doenças raras?
São consideradas raras as doenças crónicas, graves e degenerativas que colocam em risco a vida e que têm uma incidência, no espaço europeu, de uma em cada 2000 pessoas. São também conhecidas como doenças órfãs.

Qual é o seu impacto?
Segundo a Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras, estima-se que existam mais de 6000 doenças que são definidas desta forma e que afetam entre 6% e 8% da população, o que corresponde a mais de 600 mil pessoas em Portugal e cerca de 300 milhões em todo o mundo.

O que está a ser feito para as combater?
É isso que estará em discussão na conferência “A Ciência & Inovação no Combate ao Cancro: as pessoas por trás dos números”, organizada pelo Expresso e pela GSK e que se realiza digitalmente a 14 de abril, entre as 17h e as 19h, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, e a que poderá assistir no Facebook do Expresso. O objetivo é perceber de que modo a investigação está a ser desenvolvida para responder às necessidades dos doentes, com contributo de especialistas portugueses e internacionais.

Textos originalmente publicados no Expresso de 26 de março de 2021

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: toliveira@impresa.pt

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