Miguel Toscano começou a fazer surf já adulto. Tinha 38 anos quando mergulhou pela primeira vez a prancha nas ondas da Ericeira. Gestor e empresário, é atualmente diretor do centro de inovação do Ericeira Surf Clube, que este ano lançou um projeto de inclusão social para crianças, jovens e adultos com incapacidades ao nível da saúde mental e física. “O surf não é um desporto de elite. Queremos mostrar que é acessível a públicos e franjas da sociedade mais desfavorecidas”, disse ao Expresso.
O projeto, contemplado com €6500, foi um dos vencedores do Prémio BPI “la Caixa” Capacitar, destinado a apoiar iniciativas e ideias que promovam a melhoria da qualidade de vida, a ocupação e a autonomia de pessoas com deficiência ou incapacidade permanente, em situação de vulnerabilidade social. A edição deste ano premiou 28 projetos [ver caixa], atribuindo um total de €750 mil.
Além de uma prática saudável, o exercício físico pode ser terapêutico para enfrentar incapacidades e ultrapassar dificuldades físicas. No caso do surf, a ideia foi apostar na modalidade como uma forma de inclusão social, promovendo a autonomia de forma adaptada às dificuldades de cada atleta. Porque os cambiantes da incapacidade e da doença mental são tão diversificados, desenvolveu-se uma metodologia de surf adaptado que abrange competência pessoais, sociais, cívicas e profissionais.
“O surf para a inclusão destina-se essencialmente a famílias carenciadas, pessoas sem grande suporte, que dificilmente poderiam abraçar a modalidade. Queremos oferecer experiência mas também formar talentos”, afirmou Miguel Toscano, referindo que o projeto candidato aos prémios BPI “la Caixa” Capacitar terá uma ligação à Universidade da Beira Interior, para criação de um programa e metodologias de treino adaptado. O momento é de take off — no surf equivale à técnica em que o atleta se coloca em pé — para 14 utentes da zona de Mafra, com idades entre 18 e 45 anos, integrados neste projeto piloto.
Pais em rede
No ano passado assinalou-se o 10º aniversário da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal a 30 de julho. Já no ano anterior, o Governo tinha legislado sobre o regime jurídico da escola inclusiva, para dar resposta à diversidade de necessidades dos alunos numa lógica de equidade educativa. “Houve um salto muito grande”, começa por dizer Júlia Serpa Pimentel, presidente da direção da Pais em Rede, associação que trabalha na capacitação de famílias de pessoas com deficiência, nascida de um grupo de mães que perceberam a importância de partilhar experiências com os seus filhos portadores de deficiência.
A associação, contemplada com um prémio de €40 mil, oferece terapias necessárias a crianças e jovens com várias incapacidades, dinamizando igualmente atividades socialmente úteis e de ocupação dos tempos livres. Além disso, estão a ser criados gabinetes terapêuticos em articulação com os agrupamentos de escolas, com vista à inclusão na comunidade e à melhoria da qualidade de vida. Com a participação de voluntários e seniores, o projeto está a apoiar 22 crianças, adolescentes e jovens. “São miúdos com todo o tipo de incapacidade, que estudam na escola regular, alguns com atrasos no desenvolvimento, outros com limitações maiores”, diz a diretora da instituição. “Estamos muito habituados a pensar em categorias médicas, mas há uma infinidade de cambiantes dentro das diferentes categorias de deficiência.”
Valores sociais
99
é a percentagem de alunos com deficiência que frequentam o ensino regular; perto de 86% estudam em estabelecimentos públicos
2,3
é a percentagem de trabalhadores com deficiência que integram a Administração Pública; nas empresas representam menos de 1% do total
Portugal ainda discrimina a diferença?
Especialistas defendem que “ainda há um longo caminho a percorrer” na integração da população com incapacidade
É a questão-chave na integração de crianças, jovens e adultos com problemas de desenvolvimento: até que ponto Portugal discrimina estas populações mais fragilizadas? Segundo os últimos dados disponíveis no Instituto Nacional para a Reabilitação, em 2019 foram registadas 1076 queixas por discriminação, um número que tem vindo a aumentar sucessivamente desde 2014, ano em que deram entrada 353 queixas. Nesta altura, a média atingia perto de 1,4 queixas por dia.
O médico Nuno Lobo Antunes, que desenvolve trabalho junto de várias famílias afetadas por problemas de saúde mental, acredita que “qualquer doença é estigmatizante”. “Evidentemente que perturbações como o autismo e a hiperatividade sofrem de uma certa negação do problema. A própria palavra autista passou a ser utilizada quase como um insulto”, afirma.
Questionada sobre o assunto, Júlia Serpa Pimentel, investigadora na área da saúde mental e presidente da Associação Pais em Rede, defende que Portugal está melhor no que respeita à estigmatização da doença, mas considera que “existe ainda um longo caminho a percorrer”. “Nós só olhamos para as limitações da pessoa com deficiência, raramente encaramos as suas capacidades”, afirmou a investigadora, referindo, no entanto, que as alterações legislativas permitiram dar um grande salto nos diferentes níveis de incapacidade e apoios e integração em meio escolar indiferenciado.
Distinguidos no Prémio Capacitar
- ADICE — Associação para o Desenvolvimento Integrado da Cidade de Ermesinde
- Alzheimer Portugal — Delegação Norte
- ANPAR — Associação Nacional de Pais e Amigos Rett
- APACI
- APATRIS 21
- APCAS — Associação de Paralisia Cerebral de Almada Seixal
- APCB — Associação de Paralisia Cerebral de Braga
- APPACDM — Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental da Trofa
- APPACDM de Vila Nova de Gaia
- ARTENAVE, Atelier — Associação de Solidariedade
- Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa
- Associação do Porto de Paralisia Cerebral
- Associação R. INserir
- Associação Salvador
- Associação Vila com Vida
- BIPP — Inclusão para a Deficiência
- CAPITI
- CERCI Braga
- CERCIPOM
- CERCITOP, CRL
- Ericeira Surf Clube
- Escola de Judo Ana Hormigo
- Espaço T — Associação para Apoio à Integração Social e Comunitária
- Instituto das Irmãs Hospitaleiras — Casa de Saúde Bento Menni
- Instituto das Irmãs Hospitaleiras — Casa de Saúde Câmara Pestana
- Instituto das Irmãs Hospitaleiras — Centro de Reabilitação Psicopedagógica da Sagrada Família
- O Fio de Ariana — Educação e Terapia, CRL
- Pais-em-Rede — Delegação de Viseu
Textos originalmente publicados no Expresso de 20 de novembro de 2020