Os poemas de Safo ou os pergaminhos da cidade romana Herculano são uma importante parte da história, mas a sua ilegibilidade impedia os historiadores de descodificarem as palavras. Com um modelo de inteligência artificial (IA), a tarefa tornou-se mais simples. Um projeto europeu desenvolveu um algoritmo capaz de datar e preencher os espaços em branco nas inscrições.
As inscrições que sobreviveram à passagem dos séculos estão, frequentemente, danificadas com espaços ilegíveis ou fragmentadas, além de ter sido retiradas do local original e movimentadas por vários lugares. Por isso, “os historiadores dedicam muito tempo a tentar restaurar e atribuir esses textos no tempo e no espaço”, explica a investigadora Thea Sommerschield e líder do projeto PythiaPlus.
“As inscrições do mundo antigo são muito importantes porque preservam evidências diretas, escritas pelos próprios povos antigos sobre a língua, o seu pensamento e a sua sociedade. E não foram escritas apenas por Tucídides, Heródoto e transmitidas através de tradições manuscritas, foram escritas diretamente por escravos, pessoas libertadas, mulheres, imperadores, reis...”, salienta.
Devido a esta importância, o projeto PythiaPlus treinou algoritmos de inteligência artificial com “centenas de milhares de inscrições gregas antigas” para conseguir restaurar os textos e enquadrá-los no espaço e tempo. O objetivo era que esta ferramenta ajudasse os historiadores a trabalharem “mais rápido e melhor” e a “fazer algo que não teriam pensado antes”.
Desta ideia, que surgiu e foi desenvolvida durante a tese de doutoramento de Thea Sommerschield, foi lançado o algoritmo ITHACA, “um modelo novo e revolucionário” capaz de restaurar, datar e localizar inscrições gregas. Está, atualmente, disponível para uso livre na internet.
Existem inscrições escritas por Péricles, conhecido como um dos pais da democracia ateniense, que ainda hoje geram debate sobre quando terão sido escritas. “A datação tem sido tradicionalmente baseada na paleografia que é a forma como as pessoas escrevem”, por exemplo uma abreviatura especifica nas mensagens de texto no telemóvel, indicam que terão escritas na década de 90 ou no início de 2000.
“A forma como esta letra Sigma foi escrita, pode ser datada especificamente para determinados períodos e é isso que os historiadores estão a discutir. Será que remonta a 450 a.C. ou a 420 a.C.? Essa diferença de 30 anos é muito importante”, explica a historiadora. Ao colocar estes textos no algoritmo, este datou-os em 420 a.C., uma data mais alinhada com o debate atual e compreensão histórica atualizada, o que “é um ótimo resultado”.
Thea Sommerschield explica que a maior vantagem deste modelo “não se trata apenas da velocidade ou da precisão. Os historiadores tendem a especializar-se em períodos e localizações específicos, mas não é possível lembrarem-se de todos os padrões e inscrições relevantes que podem ajudar a restaurar, datar e localizar uma inscrição”, diz. Podem recorrer a livros, se forem “sortudos” de os encontrar ou usar uma base de dados digital, na qual nem sempre é simples de encontrar exatamente o que se procura.
O ITHACA permite reunir e basear-se em centenas de milhares de inscrições. Ao aprender os padrões, consegue aplicá-los a informação que nunca viu antes. “Está basicamente a fazer o mesmo do que um historiador, mas numa escala e detalhe que, nós humanos, não podemos esperar atingir”, assegura. Esta é, sobretudo, uma forma de ter todo o conhecimento disponível de uma forma simples.
“O mundo antigo não está cristalizado e fossilizado. Havia movimento de pessoas, ideias, bens. Havia guerras, vários acontecimentos ao mesmo tempo. Então, para conseguir ter essa visão completa, conectada e abrangente do passado, é preciso consultar centenas de milhares de inscrições antigas”, explica, o que a IA permite fazer rapidamente.
Recentemente, Thea Sommerschield liderou o projeto Aeneas, muito semelhante ao ITHACA, mas aplicado às inscrições latinas. Este algoritmo consegue ainda fazer paralelos entre as várias epígrafes. Ainda assim, os modelos estão disponíveis para que qualquer um o treine para uma linguagem diferente, o que aumenta o leque de possibilidades.
“As inscrições são fontes de evidência incrivelmente importantes, mas não são as únicas. Há textos literários, há textos escritos em papiros e todas essas são possibilidades que podem ser usadas para treinar novos modelos. Isso seria algo em que eu teria muito interesse em trabalhar no futuro”, revela.
A ajuda imprescindível dos fundos comunitários
O projeto PyhtiaPlus foi financiado em cerca de 171 mil euros através do programa europeu Marie Skłodowska-Curie Actions, apoiado pelo programa Horizonte. Foi um apoio “fundamental” que “mudou a minha vida de muitas formas”, garante Thea Sommerchield.
A investigação académica apresenta muitas dificuldades, por isso, “o apoio específico da UE a projetos nas áreas das ciências humanas e ao nível pós-doutoral é absolutamente inestimável”. Nas universidades, os contratos a curto prazo e a precariedade dos pós-doutorados são frequentes, mas estas iniciativas podem ser “realmente transformadoras”.
Conhecer ideias que contribuem para uma Europa mais competitiva, mais verde e mais assente em direitos sociais são os objetivos do projeto Mais Europa.
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