Horizonte 2030

Combate ao VIH sem comando nacional

SNS investe perto de €200 milhões por ano em medicamentos para o vírus, que são distribuídos em farmácias como a do Hospital de Cascais
SNS investe perto de €200 milhões por ano em medicamentos para o vírus, que são distribuídos em farmácias como a do Hospital de Cascais
D.R.

Desafio: especialistas temem um retrocesso no controlo da epidemia e lamentam falta de liderança no programa nacional para a infeção. Nomeação de novo diretor é urgente, garantem

Desde 2012, Portugal registou uma redução de 44% nos novos casos de VIH. Porém, o sucesso alcançado pode estar ameaçado pela ausência de liderança técnica do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis e Infeção pelo VIH (PNISTVIH), consideram os especialistas do Conselho Consultivo do projeto Horizonte 2030, criado pelo Expresso em 2022. Há mais de sete meses que a estrutura responsável pelo controlo epidemiológico e pela definição da estratégia para esta área não tem um diretor atribuído. A Direção-Geral da Saúde (DGS), a quem compete a nomeação, não respondeu ao pedido de esclarecimento do Expresso sobre a demora na substituição da antiga responsável.

A anterior líder nacional no combate ao VIH era Margarida Tavares, que em setembro assumiu a pasta da Secretaria de Estado para a Promoção da Saúde, e que até hoje não foi substituída. Para Ricardo Fernandes, diretor do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), a situação “é preocupante” e mais uma evidência de que “este modelo dos programas prioritários da DGS não serve bem” a área. Além do que considera ser uma liderança intermitente — recorde-se que Margarida Tavares manteve-se no cargo apenas durante um ano —, o responsável lamenta ainda a falta de recursos humanos e orçamento atribuídos ao controlo da infeção. A resolução do problema não se fará, acredita, apenas com a nomeação de um novo líder. “Estamos cansados de programas e estratégias que são muito bonitos e que dizem o que deve ser dito, mas que depois não têm recursos alocados”, critica.

Especialista no tratamento de doentes VIH há mais de 30 anos, José Manuel Poças justifica a demora na nomeação da nova direção do PNISTVIH com a saída de Graça Freitas da DGS, cujo mandato terminou no final do ano passado. “Penso que se está à espera de saber quem é o vértice da pirâmide [para avançar com nova equipa]”, aponta o diretor de infecciologia do Hospital São Bernardo, em Setúbal. Para alguns dos especialistas que integram o Conselho Consultivo do Horizonte 2030, os desafios identificados nos relatórios anuais sobre a infeção por VIH são os mesmos há vários anos e um sintoma de incapacidade.

Em causa está, por exemplo, a elevada taxa de diagnósticos tardios que se verifica no país ano após ano. Em 2018, o número fixava-se em 55,8%, valor que desceu para 49,7% em 2019 e que voltou a aumentar no biénio 2020-2021 para 59,4%. “O número de doentes que são admitidos em fases tardias continua a ser constantemente elevado”, reforça José Manuel Poças. Estes dados refletem a importância de uma aposta forte na testagem generalizada da população para que os novos casos sejam detetados precocemente. Isto permite não só evitar consequências para a saúde de quem vive com o vírus, como também reduzir a transmissão.

(PrEP)arar o futuro

Uma das ferramentas de prevenção do VIH passa pela utilização da profilaxia pré-exposição. No entanto, o acesso à medicação que protege contra a infeção depende da prescrição em consulta hospitalar nos serviços de infecciologia, que acumulam pedidos e geram listas de espera que podem chegar a 12 meses. “Infelizmente, algumas destas pessoas ganham infeção durante o período de espera, o que é uma oportunidade perdida”, refere Ricardo Fernandes. A secretária de Estado para a Promoção da Saúde reconheceu esta dificuldade durante a apresentação do relatório “Infeção por VIH em Portugal — 2022”, em novembro, e anunciou a intenção do Governo de “alargar” o acesso à PrEP aos cuidados de saúde primários e às organizações de base comunitária. A medida chegou mesmo a ser inscrita no Orçamento do Estado para 2023, mas ainda não foi aplicada.

Segundo fonte ligada ao processo, esta é uma prioridade para a secretária de Estado Margarida Tavares, que quer ver a medida implementada até ao final do ano. A concretizar-se, significa que associações de base comunitária com equipas médicas passam a poder realizar consultas de prescrição da PrEP e de acompanhamento durante a toma da medicação. “A Liga Portuguesa Contra a Sida tem condições, através da sua unidade móvel, de fazer a consulta e de poder disponibilizar a medicação. Claro que isso implica recursos financeiros”, considera a presidente Maria Eugénia Saraiva, que acredita que será lançado um concurso público para atribuir financiamento a estas organizações. O Expresso contactou o Ministério da Saúde sobre esta questão, mas até ao fecho desta edição não foi possível obter esclarecimento.

Generalizar o teste na população

Diagnóstico O último relatório sobre a infeção por VIH em Portugal refere que em 2021 foram prescritos mais de 281 mil testes nos cuidados de saúde primários. Porém, é preciso aumentar a testagem. José Manuel Poças, diretor de Infecciologia no Hospital São Bernardo, defende a inclusão automática do teste nas prescrições médicas. “Vamos apanhar 99,9% das pessoas que estão infetadas e não sabem”, garante. O serviço de urgência do Hospital de Cascais já usa este método desde 2018.

193

milhões de despesa total com medicamentos para o tratamento da infeção por VIH em 2022, de acordo com o Infarmed. O montante representou 13,3% dos encargos totais com medicação no SNS. O custo mensal por doente oscila entre os diferentes hospitais — o Centro Hospitalar de Setúbal lidera, com €450,66 por doente, enquanto no fim da tabela está a Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, com um custo de €233,60. O VIH é a terceira maior despesa

Especialistas pedem mais investimento na prevenção de doenças, uma área em que, segundo dados da OCDE, Portugal gastou em 2020, 1,9% da despesa em saúde. A média dos 26 países analisados fixou--se em 3,3%, numa tabela que coloca Portugal em 23º lugar

Literacia em saúde precisa-se

Conhecimento Para a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), quebrar a transmissão do vírus depende de novas abordagens à sensibilização sobre a infeção. “Dos inquéritos que temos feito, a maior parte dos jovens não sabe como é a transmissão do VIH e como isto se transforma em sida”, exemplifica a presidente, Cristina Vaz de Almeida. A resposta deve assentar em novas campanhas de informação adaptadas aos diferentes públicos. “A literacia salva vidas”, sublinha.

4,3

é o número de diagnósticos de VIH por cada 100 mil habitantes, em 2021, na União Europeia e no Espaço Económico Europeu, segundo dados do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). A incidência tem vindo a cair desde 2012, quando era de seis casos por 100 mil habitantes. Em Portugal, segundo dados do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis e Infeção pelo VIH, a incidência foi de 8,7 diagnósticos por 100 mil habitantes no biénio 2020-2021

Novos desafios

O Expresso — com o apoio das principais associações de doentes na área do VIH e da ViiV Healthcare — criou um projeto para pensar as principais prioridades políticas, médicas e sociais nesta área do VIH. Na base está um conselho de especialistas, que tem produzido recomendações e caminhos para melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde e a qualidade de vida dos doentes.

Textos originalmente publicados no Expresso de 14 de abril de 2023

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