Acelerador de Sustentabilidade

“Produzir filetes em laboratório vai ser possível e necessário”

“Produzir filetes em laboratório vai ser possível e necessário”

Mar. Economia azul representa hoje 5% da riqueza nacional, mas o potencial destes recursos está subaproveitado. Nos Açores, só o ecoturismo marinho pode gerar €80 milhões por ano. Falta investir na formação e na investigação científica

São mais de 1,7 milhões de quilómetros quadrados de área marítima sobre a qual Portugal tem responsabilidade, um número que coloca o país em quinto lugar entre as nações europeias com maiores Zonas Económicas Exclusivas (ZEE). Mas, com tamanho património natural, vem também a responsabilidade de garantir a segurança do oceano, de preservar a sua biodiversidade e, sobretudo, de explorar de forma sustentável os seus recursos. Segundo dados reportados pelo Governo em 2023, a economia do mar contribui com cerca de 5% do produto interno bruto (PIB) e das exportações, incluindo sectores como a pesca, a aquicultura, o transporte marítimo ou o turismo costeiro.

Porém, à medida que avança o combate às alterações climáticas e se multiplicam os esforços para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, a economia azul sustentável ganha cada vez mais importância. Manuel Mota, partner da EY e especialista em temas ligados à sustentabilidade, defende que é preciso “reconhecer que o planeta tem limites que a ciência já demonstrou” e agir para proteger os recursos naturais, em particular os oceanos. “É a economia azul sustentável que nos vai permitir colmatar as nossas necessidades [ao nível de recursos] sem colocar em causa as gerações futuras”, garantiu durante mais uma sessão do Acelerador de Sustentabilidade, projeto do Expresso com apoio do BPI, que desta vez rumou a São Miguel, nos Açores, para debater o tema com as empresas regionais.

É precisamente naquele arquipélago que se discute, há vários anos, a implementação de áreas marinhas protegidas que ocupem 30% do mar da região, em linha com os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. A iniciativa faz parte do programa Blue Azores — uma joint venture entre o Governo Regional, a Fundação Oceano Azul e o Instituto Waitt —, que pretende criar planos de gestão das áreas protegidas, melhorar o ordenamento do espaço marítimo e apoiar a reestruturação do sector da pesca.

Apesar de reconhecer que a região evoluiu “muito ao nível tecnológico” na atividade pesqueira, o diretor do Okeanos — Instituto de Investigação em Ciências do Mar diz que a “dificuldade em mudar a mentalidade dos pescadores” resulta num subaproveitamento do potencial da pesca. “Acredito que os Açores podiam ter hoje o triplo do valor proveniente da pesca”, sublinha Gui Menezes. O também investigador da Universidade dos Açores garante que, para lá deste obstáculo, os ingredientes para o sucesso já estão reunidos: existem “boas medidas de gestão e há conhecimento”.

Profissionalização como resposta

Jorge Gonçalves, presidente da Federação das Pescas dos Açores (FPA), concorda com a ideia de que há muito a fazer para melhorar a literacia sobre sustentabilidade junto dos pescadores. As consequências, garante, fazem-se sentir no incumprimento repetido da legislação sobre limites na captura de espécies, com dano para a reputação da profissão e para a redução do preço de venda da matéria-prima, mas sobretudo com desvantagens para o ecossistema. “Nós, açorianos, somos maus para nós mesmos”, lamenta. A solução passa por aumentar a fiscalização para penalizar os infratores, uma sugestão deixada por grande parte dos empresários presentes na última sessão do Acelerador de Sustentabilidade.

Blue Azores quer proteger 30% do mar da região e pode gerar até €67 milhões anuais em turismo marítimo

Mais do que pescar sem respeito pelos limites impostos pelas quotas para cada espécie, Jorge Gonçalves defende que é preciso “pescar menos e valorizar mais”, até porque, critica, “só aproveitamos um terço do pescado e o resto é desperdiçado”. Empresas como a Santa Catarina — Indústria Conserveira procuram maximizar o aproveitamento da matéria-prima e transformar os resíduos e sobras de atum em subprodutos. “Vendemos outras partes que não precisamos para farinhas”, exemplifica Lúcia Enes, diretora financeira da empresa. Além disso, a venda de conservas de atum não se restringe às variedades habi­tuais e inclui uma linha de especialidade, feita com produtos regionais, que permitem aumentar o valor gerado com a matéria-prima certificada — pelo respeito pelas técnicas ancestrais dos Açores, pela preservação do habitat dos golfinhos e pelo cumprimento de normas ambientais.

Gui Menezes lembra que “os oceanos estão sob grande pressão”, uma realidade atestada por inúmeras instituições ligadas à academia e à proteção ambiental. Segundo a World Wildlife Fund, a capacidade da frota pesqueira mundial é 2,5 vezes superior ao que seria sustentável para o oceano. A aquacultura surge como uma das opções para aumentar a sustentabilidade no consumo de recursos e também, aponta Gui Menezes, a produção de pescado em laboratório. “Produzir filetes em laboratório vai ser possível e necessário no futuro”, afirma.

O mar não é só peixe

A partir do oceano, alimentam-se não apenas 40% da população mundial, mas também sectores como o turismo, as indústrias farmacêutica e da cosmética. Para tudo isto é preciso garantir uma aposta contínua na investigação e desenvolvimento (I&D), uma área em que Portugal precisa de melhorar. “Os Açores investem apenas 0,3% do seu PIB em ciência, e Portugal investe também muito pouco. Tudo no mar depende muito da ciência e da evolução do conhecimento”, reforça Gui Menezes.

Para Luís Filipe Teves, executivo da Algicel — Biotecnologia e Investigação, o maior desafio está em conseguir aumentar a investigação aplicada que possa traduzir-se em novos processos, produtos e, no fim da linha, em geração de valor económico. “A nossa empresa registou as duas primeiras patentes nos Açores. Portugal tem poucas patentes”, critica. Na Algicel, como em várias outras empresas da região, a biotecnologia é utilizada para tirar partido das algas e microalgas, que dão origem a produtos de grande valor acrescentado. É o caso dos suplementos alimentares que produzem e que oferecem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.

“O potencial do mar é mesmo muito grande”, assegura Gui Menezes, que lembra a importância da colaboração entre empresas e academia, bem como entre concorrentes, para avançar na produção de conhecimento. “A ciência hoje não se faz isoladamente. É preciso que os empresários falem entre si”, insiste.

Investimento com retorno

Para Manuel Mota, a implementação de projetos inovadores na economia azul é uma aposta ganha. Em todo o país surgem iniciativas que aliam a geração de valor económico aos ganhos ambientais, como é exemplo o Windfloat, o primeiro parque eólico offshore flutuante da Europa, que vai permitir evitar a produção de 58 mil toneladas de carbono. No arquipélago dos Açores — cujo mar representa 56% do território marítimo nacional —, a valorização dos ecossistemas tem um potencial económico anual importante: €31,7 milhões na pesca, €22,5 a €67 milhões no turismo marítimo e €80 milhões no ecoturismo marinho. “O potencial é brutal”, repete.

BOAS PRÁTICAS PARA PROTEGER A ECONOMIA AZUL

Pesca sustentável

Utilização de métodos certificados que não esgotem as populações de peixe e minimizem o impacto ambiental




Proteger a biodiversidade

Regulação do turismo costeiro e monitorização e definição de reservas marinhas são medidas eficazes




Restaurar corais marinhos

Programas que visem proteger estes organismos essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas e captura de CO2




Recolha de lixo

Promoção de ações para a limpeza de praias e oceanos que diminuam a poluição e protejam as espécies




Programas de sensibilização

Comunicação da ciência e da biologia marinha para que a população compreenda a importância dos oceanos




Aquacultura responsável

Produção de peixe com práticas sustentáveis e tecnologia para prevenir desperdício e doenças




Produção de energia verde

Usar o mar para a geração de energias renováveis, como a eólica, é hoje possível na costa portuguesa




Biotecnologia do mar

Cultivar algas marinhas para utilização na área da biotecnologia, farmacêutica e alimentação animal





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