Geração E

Perante a derrota política, Trump regressa ao terreno em que é rei: o do tumulto

Perante a derrota política, Trump regressa ao terreno em que é rei: o do tumulto

Bernardo Valente

Professor convidado do ISCSP da Universidade de Lisboa, doutorando em Ciência Política e especialista em Economia Política Internacional

Não nos enganemos, estamos muito mais próximos de um revivalismo do 6 de janeiro do que podíamos pensar. A estratégia é a mesma. Apelar à força quando perde. A diferença é que agora Donald Trump está perdido enquanto no poder. Portanto, ao invés de apelar às suas milícias de guerrilha urbana que provêm do âmago do movimento MAGA, apela a uma força maior. A força da Guarda Nacional e dos Marines

No fim de semana de 14 de junho, com um anacrónico desfile militar, Donald Trump marcou o início de uma nova fase da sua retórica política: o revivalismo do 6 de janeiro de 2020.

Esse dia, que marca na história o fim do primeiro mandato do bilionário, presidente, rei e narcísico Donald Trump resultou num banho de sangue no Capitólio incentivado pelo próprio. Encurralado perante a derrota nas eleições para um Joe Biden enfraquecido e uma Kamala Harris que não colhia a simpatia da população, movido pelas teorias de conspiração disseminadas pelo QAnon e outras madraças online ligadas à manosfera, a última solução de Donald Trump foi não se render e esperar que o seu exército do MAGA 1.0 fizesse o resto. O resultado ficou à vista: o dia mais negro da orgulhosa democracia americana perpetrado por uma multidão enraivecida, que nunca aceitou a derrota eleitoral.

Num “plot twist” digno de Tarantino, passados quatro anos do dia mais infausto da história recente dos EUA, Donald Trump voltou à Casa Branca, provando aos mais céticos que a população americana tem 1.001 preocupações, mas a manutenção da democracia não é uma delas. A limpeza dos maus, parasitas, ilegais e “aliens” feita bandeira sufragista foi suficiente para vencer as eleições a um Partido Democrata amorfo, condição que tem mantido nos últimos meses. Perante a ausência de representação institucional significativa dos Democratas, Donald Trump tem sido dono e senhor do destino da democracia que alumiou o caminho nos últimos 50 anos ao mundo ocidental. Alumiou, já não alumia?

Após as últimas eleições nos EUA, escrevi aqui que as democracias ocidentais corriam o risco de, num golpe de mais sorte do que génio do presidente dos EUA, este acabar com a guerra na Rússia e na Ucrânia em tempo recorde e arranjar uma solução bilateral para Gaza, e assim Donald Trump acabar elevado a farol geopolítico da nova ordem internacional. Ainda a compreender se feliz ou infelizmente, essa opção não se materializou e o presidente-rei tem visto derrota atrás de derrota, com a popularidade a cair para níveis históricos nos primeiros seis meses do seu mandato. Quase tudo o que prometeu não cumpriu, e tudo o que cumpriu estava errado.

Na política interna, Elon Musk, o seu maior aliado, que ainda há poucos dias mandava o seu coração para todos os apoiantes e alegava a soberania afrikaaner com gestos pouco ortodoxos, tornou-se por momentos o seu maior inquisidor, com alegações de pedofilia à mistura. Uma coisa é certa, o DOGE, menino bonito da reforma federal americana, epítome dos cortes nas gorduras do Estado, foi atropelado pelo piloto automático da “big and beautiful” política orçamental despesista de Donald Trump.

Musk é um trunfo fora do baralho, Musk é o DOGE, o DOGE era Musk, o DOGE é um trunfo órfão que ao dia de hoje ninguém consegue explicar para o que serve. É o tecno-populismo de Musk contra o populismo da militarização e orgulho patriota trumpista. O aparecimento de um terceiro grande partido na “democracia” americana, liderado pelos tech bros, os self-made-men de Silicon Valley, passa a ser uma ameaça real ao espaço eleitoral ocupado pelo Partido Republicano – que nesta fase se confunde com a própria pessoa de Donald Trump.

Na política externa, as tarifas que iriam afundar a economia chinesa e obrigar todo o xadrez financeiro internacional a ajoelhar-se perante a unipolaridade americana foram um rotundo falhanço. A unipolaridade não se reganha. Pelo menos, não se reganha apenas com a vontade de o fazer. Muito menos num mundo onde a China tem um potencial de inovação superior ao dos EUA (o ataque de Trump a cientistas em território americano agudizou ainda mais essa disparidade a longo-prazo), a Rússia não parece nada importada com o artigo 5.º da NATO e a India será nos próximos 100 anos a nação com maior crescimento tecnológico no globo. Para além disso, dentro de portas, os pequenos empresários americanos – baluarte das instituições económicas e da cultura americana – estão a ser estrangulados pelas tarifas que diluem as suas residuais margens de lucro. Com uma nova guerra de dimensões nucleares espoletada pelo seu amigo Netanyahu, o que sobra aos EUA? O que sobra de e para Trump?

“Well, Fake it til you make it!” Quando não sobra nada, finge ser algo até conseguires mesmo sê-lo. Donald Trump quer ficar gravado na ótica dos norte-americanos como o portador da ordem e, por isso, perante o falhanço de todos os seus projetos distópicos até aqui, sobrou-lhe militarizar o regime para passar uma imagem de força endógena. Como resultado tivemos um belíssimo exemplo prático de terceiro mundismo durante o fim de semana de 14 de junho. De um lado, os vários protestos “No Kings”, reprimidos de forma unilateral pela administração Trump, sem a conivência dos órgãos estatais, do outro uma parada militar circense que implicou uma despesa de milhões, por coincidência, repito… apenas e só por coincidência, no aniversário do presidente-rei.

Não nos enganemos, estamos muito mais próximos de um revivalismo do 6 de janeiro do que podíamos pensar. A estratégia é a mesma. Apelar à força quando perde. A diferença é que agora está perdido enquanto no poder. Portanto, ao invés de apelar às suas milícias de guerrilha urbana que provêm do âmago do movimento MAGA, apela a uma força maior. A força da Guarda Nacional e dos Marines. Trump nunca aceitará a derrota, muito menos uma derrota autoinfligida como esta.

Trump “nunca erra” e a parada militar é a performance que convoca as escolhas sempre lógicas e acertadas do líder supremo dos EUA. Trump cavou a sua sepultura e arrastou uma nação, possivelmente o mundo ocidental, com ele. No cenário geopolítico, não se sabe onde começam os EUA e onde termina Trump. A instrumentalização das forças de segurança é o último reduto de uma presidência desastrosa que daqui em diante viverá ligada às máquinas do aparelho militar. Uma espécie de 6 de janeiro invertido, mas com o mesmo objetivo - comemorar o dia de rei(s).

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