O dia 10 de junho começou com uma barbaridade e acabou em barbárie. Durante a tarde deste feriado do Dia de Portugal, o grupo 1143, uma organização de extrema-direita, fascista, racista e anti-LGBT realizou a primeira marcha de “Orgulho Heterossexual” de Portugal. Esta efetiva realização da marcha de orgulho hetero é um sintoma de uma fração da sociedade que se está a mostrar permissiva ao discurso de ódio.
A comunidade LGBT não é o perigo, mas antes quem corre perigo
As pessoas que pertencem à comunidade LGBT estão habituadas a procurar espaços públicos com designação de “LGBT friendly”. Esta designação posiciona o poder de aceitar em quem é hetero e cisgénero (que se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença) mas aceita a diversidade: “nós aceitamos os outros”. Há uma divisão vincada. Quando se expõe a problemática desta forma, facilmente nos apercebemos como quem sai forma do padrão normalizado de pessoa hetero cisgénero, branca, nascida no país onde reside, é posta na caixa da diversidade, nas pessoas que são diferentes, sempre numa relação de “nós e os outros”. Ao contrário do que os grupos racistas, fascistas e anti-LGBT, como o 1143, querem fazer o povo crer, as pessoas que se encaixam neste padrão da diversidade não representam perigo, mas antes estão em constante perigo. Como exemplo, basta, efetivamente, pensarmos em como os espaços se apresentam como “LGBT friendly” e não “hetero friendly” para perceber quem corre perigo, quem tem a necessidade de procurar espaços mais seguros, quem pode ser agredido ou até morto por causa da sua orientação sexual ou identidade de género. As pessoas hetero não correm perigo por serem hetero, mas as pessoas LGBT+ correm perigo simplesmente por serem da comunidade.
Para quem não é da LGBT+, antes de pensarem na comunidade como “as outras pessoas”, pensem que somos a vossa tia que vos adora, o vosso primo com quem partilham confidências, amigue de longa data, a vossa mãe, o vosso pai, o melhor amigo da escola, a vizinha do 1º. centro, a empregada que vos serve o café, o vosso colega de trabalho, a Clara que vos escreve. A comunidade LGBT não é uma segmentação da população que vive à parte, é uma comunidade constituinte da sociedade.
Todas as pessoas LGBT em alguma altura da sua vida já pensaram como a vida seria muito mais fácil se não fizessem parte da comunidade, sendo que demasiadas delas já pensaram em, tentaram, ou efetivamente tiraram a própria vida por falta de aprovação da sua própria família e da sociedade em relação à sua orientação sexual ou identidade de género. O orgulho é necessário para que as pessoas LGBT sentirem a união da comunidade e das suas pessoas aliadas, para se sentirem valorizadas, amadas, e não excluídas e violentadas.
Foi neste contexto que a Marcha de Orgulho LGBT+ foi criada, para mostrar representatividade, para as pessoas LGBT+ que ainda não tiveram coragem de o afirmar se sentirem abraçadas, e para quem já é publicamente parte da comunidade sentir a união. Além disso, e principalmente aquando a sua origem, o objetivo foi reivindicar a igualdade de direitos e tratamento da comunidade LGBT+, em relação ao poder vigente do privilégio heteronormativo. Em Portugal, a primeira marcha aconteceu em 2000, fazendo com que a marcha este ano faça 25 anos de existência em Portugal.
Apesar de haver regularmente situações que mostram como ainda não há igualdade de tratamento para a comunidade LGBT, as provocações em formato de “mas que direitos querem mais eles?” são recorrentes. Aliás, ainda estou à espera que me expliquem como é que os heterossexuais se sentem excluídos da sociedade no seu dia-a-dia corriqueiro, ou como se sentem em perigo apenas por serem hetero, de tal forma que justifique uma marcha de orgulho hetero, mas, enfim, avancemos. Continuando, aqui fica uma mera lista de razões pelas quais o Orgulho LGBT+ é necessário:
- O Orgulho LGBT+ é urgente porque há pessoas que, a dada altura da sua vida, acham que é melhor tirarem a própria vida do que viver com o preconceito da sociedade e da prórpria família por serem LGBT+;
- O Orgulho LGBT+ é necessário porque todos os dias as pessoas LGBT vêm a sua orientação sexual ou identidade de género, não só a ser motivo de piadas descabidas e ofensivas, como uma característica usada como justificação para sobre elas imporem violência descabida.
- O Orgulho LGBT+ é necessário para que todas as pessoas jovens rejeitadas pelos próprios pais e mães por serem LGBT tenham uma comunidade que as recebe de braços abertos: as pessoas jovens LGBT não escolhem ficar emocionalmente sem pais e mães, mas há muitas mães e pais que preferem cortar o contacto com um filho só porque ele é gay;
- O Orgulho LGBT+ é importante para vincarmos que temos o direito a viver a sua afetividade como qualquer outro casal heterossexual sem ser olhado/a/e de lado, e a celebrar o amor como qualquer outro casal heterossexual tem o direito de celebrar.
- O orgulho LGBT é importante porque em quase 70 países é ilegal ser-se LGBT, sendo que em 7 países a lei prevê pena de morte para homossexuais.
Quando ouço pessoas anti-LGBT a afirmarem que ser homossexual é antinatural, relembro-me como a homossexualidade já foi observada em mais de 1500 espécies de animais. No entanto, só o ser humano desenvolveu a homofobia. Assim sendo, não deveríamos antes considerar a homofobia como antinatural? Não sou eu que o digo, é a observação da Natureza.
Sendo que o acesso à informação fidedigna e ao pensamento crítico potenciam a desconstrução de argumentos infundados, racistas, homofóbicas e fascistas, não é de admirar que as pessoas que acreditam nestas máximas com o ódio de base — nesta luta entre “nós e os outros” —, os grupos neonazis, queiram atacar a Cultura. Oator Adérito Lopes foi apanhado neste ódio de extrema-direita neonazi, tendo sido agredido, sem qualquer justificação possível.
Por incrível que possa parecer, esse dia 10 de junho conseguiu conter ainda mais uma manifestação de ódio neonazi na cidade do Porto. Uma equipa de voluntárias de uma associação de apoio alimentar a pessoas sem-abrigo foi agredida e insultada por dois homens que, antes das agressões, fizeram a saudação nazi, culpando as voluntárias de potenciar o aumento de imigrantes no país. Embora esta correlação seja falaciosa e mentirosa, as agressões foram reais e a presença neonazi em Portugal tornou-se inegável. Felizmente, inegável também é a união das pessoas que contrariam este movimento destrutivo da sociedade.
Recordo o comentário de Adriana Cardoso que, depois de enumerar diversas manifestações neonazis e fascistas, afirma que grupos como o Habeas Corpus e o grupo 1143 se sentem legitimados pela presença forte de um partido como o Chega na Assembleia da República.
Mais do que nunca desde o 25 de abril de 1974, é preciso unirmo-nos. E foi mesmo isso que aconteceu ontem, domingo, dia 15 de junho, nas cidades de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa, Almada, Torres Novas, Évora, Beja, Odemira, Faro, Funchal e Angra do Heroísmo, onde foram realizadas concentrações por solidariedade ao ator Adérito Lopes.
Como diziam vários cartazes nas concentrações:
“Querem-nos com medo, mas nós não temos.”