Geração E

A resposta ao apagão não está na política, mas na engenharia

A resposta ao apagão não está na política, mas na engenharia

Samuel Ramos de Pina

Engenheiro Eletrotécnico com especialização em Energias

O apagão trata-se de uma falha operacional num sistema altamente complexo, onde o foco deve estar na engenharia, nos procedimentos e na aprendizagem — e não em interpretações políticas

O evento desta segunda-feira colocou a esfera pública em alvoroço a discutir o sistema elétrico nacional — um tema até aqui desconhecido para a maioria. Assistimos a figuras políticas e mediáticas a apressarem-se a tirar conclusões e a fazer leituras ideológicas de um incidente que, antes de mais, é técnico. Estamos perante uma falha operacional num sistema altamente complexo, onde o foco deve estar na engenharia, nos procedimentos e na aprendizagem — e não em interpretações políticas.

Mas vamos por partes: do ponto de vista técnico o que é um blackout?

A rede elétrica baseia-se num princípio físico muito simples: “o que está a ser produzido tem que ser, a todo o momento, igual às necessidades de consumo dos clientes". Cabe ao Operador do Sistema de Transporte, que em Portugal é a REN, garantir esse equilíbrio através do seu centro nacional de despacho,.

Quando há um desequilíbrio, isso leva a uma oscilação da frequência da rede (normalmente 50 Hz). Se a produção for superior ao consumo, a frequência sobe; se for inferior, a frequência desce. Esta frequência é fundamental porque as massas girantes (turbinas que geram eletricidade em centrais térmicas, hídricas) giram sincronizadas com a frequência da rede.

Como é que a REN garante este equilíbrio?

Os operadores têm controlo sobre ligar e desligar centrais consoante as necessidades de consumo. Garantindo assim que a produção iguala o consumo.

O que aconteceu para que esse equilíbrio não tenha sido assegurado?

Como muito se tem falado, tudo indica que “desapareceram” 15GW de produção do lado espanhol. Como termo de comparação, isto equivale a cerca do dobro do consumo de Portugal inteiro em hora de ponta. Essa perda de produção pode dever-se a múltiplos fatores, como por exemplo, linhas de transportes que saíram de serviço por disparos de disjuntores. Esta queda instantânea na produção levou a uma queda de quase 0,4% na frequência da rede ibérica — o que é bastante crítico do ponto de vista da estabilidade e segurança da rede.

Quando o desvio da frequência é grande, como o que tivemos, os chamados sistemas de proteção da rede são ativados e disparam os disjuntores da rede de Muito Alta Tensão. Se houver um dessincronismo total, é necessário reiniciar o sistema do zero.

Havia forma de evitar o apagão total?

Sim e não... As proteções são calibradas para dispararem de forma sequencial, tentando isolar o problema da rede e assim evitar que esta seja afetada. Exemplo disso é o chamado deslastre sequência de carga, isto é, vão-se desligando clientes de forma sequencial baixando o consumo até que este fique igual à “nova produção”.

Acontece que as calibrações dos sistemas de proteção são processos ultracomplexos onde há apenas uma maneira de ”fazer a coisa bem” e muitas de a “fazer mal”. Podem acontecer epifenómenos com configurações tão peculiares e raras que as proteções não conseguem atuar com eficácia. Quando assim é, pode haver um dessincronismo total da frequência e todo o sistema cair - blackout.

Porque é que a reposição do serviço leva várias horas?

Quando todo o sistema fica sem energia, é necessário recorrer a centrais capazes de arrancar do zero sem estarem alimentadas energeticamente, no chamado black start.

Depois, de forma gradual, vão-se ligando cargas e outras centrais, sempre de forma sincronizada com a rede. Este processo é bastante complexo e sensível, porque se entrar demasiada carga ou demasiada produção de uma só vez, a frequência volta a oscilar — e é preciso começar tudo do zero novamente. Daí o restabelecimento poder demorar tanto tempo.

No caso português as centrais com black start são a termoelétrica a gás da Tapada do Outeiro e a barragem de Castelo de Bode. Sendo que já estavam previstos investimentos nas barragens do Alqueva e Baixo Sabor para as dotar de capacidade de black start e assim maximizar a capacidade de resposta a incidentes deste tipo.

Faz sentido colocar tudo em causa com este incidente?

Vimos neste período muitas pessoas a colocar questões como: Porque é que estávamos a importar energia? Estamos dependentes de Espanha energeticamente? O abandono do carvão deixou-nos fragilizados? Teria sido diferente se a REN fosse pública?

A decisão de importar/exportar energia não se pode pôr em termos tão simples pois Portugal e Espanha estão integrados num mercado ibérico de energia (MIBEL), ou seja, do ponto de vista de produção é como se fossemos uma só rede onde os produtores que venderem energia mais barato são os que são ligados à rede, sejam eles do lado de cá ou de lá (limitado claro por questões técnicas da capacidade de interligação entre as regiões).

Estamos dependentes de Espanha energeticamente?

Não, somos autossuficientes, mas estamos interligados, para o bem e para o mal. No geral esta interligação torna-nos mais resilientes e estáveis, pois, quando há problemas em Portugal, a rede espanhola ajuda-nos “puxando-nos para cima”, e vice-versa. Porém, numa situação limite como a desta semana, a “quebra” em Espanha foi tão grande que nos fez a todos cair. Por isso mesmo é que fortalecer a ligação ibérica às redes energéticas francesa e marroquina só tornará a nossa rede mais segura e resiliente.

Caso houvesse mais centrais a carvão ter-se-ia evitado este incidente?

Não necessariamente, uma vez que, apesar de oferecerem maior inércia à rede, nada garantiria que seria suficiente para resistir ao abalo. Além disso, tendo em conta o modelo de mercado atual seria pouco provável que numa altura de grande oferta renovável tivéssemos as centrais a carvão ligadas a produzir ou como capacidade de entregar imediatamente a quantidade de energia que estávamos a importar.

Teria sido evitado o apagão se a REN fosse pública?

Independentemente do carácter publico ou privado, o processo de gestão e restabelecimento da rede depois de um blackout é um processo técnico, muito bem documentado e com procedimentos bem definidos. Em termos estritamente operacionais, o processo teria sido exatamente o mesmo.

E agora?

Do ponto de vista técnico, será reunido pela REN (como sempre) um GAI – Gabinete de Análise de Incidentes, que nos permitirá perceber ao certo e sem especulações porquê e o quê que aconteceu? E, acima de tudo, o que podemos aprender para o futuro com este apagão?

Sem dúvida que esta situação pode desencadear a discussão sobre algumas decisões políticas tomadas nos últimos anos: fará sentido rever o modelo de mercado de energia? Será seguro o Estado ser apenas espectador relativamente à operação da rede de transporte? Os investimentos estratégicos no desenvolvimento da rede deveriam ter mais influencia do governo central?. No entanto, essas serão discussões diferentes e para outros fóruns.

Independentemente destas questões políticas creio que não faz sentido pôr tudo em causa devido ao ocorrido. Temos uma rede segura e com uma taxa de interrupção de serviço baixa. É preciso entender que por vezes há contingências que a engenharia não consegue antecipar e, na minha opinião, um incidente de 12h a cada 25 anos é algo que, apesar de indesejável, é tolerável desde que os planos de contingência funcionem.

A perfeição não existe, mas a preparação sim — e os nossos técnicos e sistema mostraram estar preparados para o imprevisto.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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