A resposta ao apagão não está na política, mas na engenharia
O apagão trata-se de uma falha operacional num sistema altamente complexo, onde o foco deve estar na engenharia, nos procedimentos e na aprendizagem — e não em interpretações políticas
Engenheiro Eletrotécnico com especialização em Energias
O apagão trata-se de uma falha operacional num sistema altamente complexo, onde o foco deve estar na engenharia, nos procedimentos e na aprendizagem — e não em interpretações políticas
O evento desta segunda-feira colocou a esfera pública em alvoroço a discutir o sistema elétrico nacional — um tema até aqui desconhecido para a maioria. Assistimos a figuras políticas e mediáticas a apressarem-se a tirar conclusões e a fazer leituras ideológicas de um incidente que, antes de mais, é técnico. Estamos perante uma falha operacional num sistema altamente complexo, onde o foco deve estar na engenharia, nos procedimentos e na aprendizagem — e não em interpretações políticas.
A rede elétrica baseia-se num princípio físico muito simples: “o que está a ser produzido tem que ser, a todo o momento, igual às necessidades de consumo dos clientes". Cabe ao Operador do Sistema de Transporte, que em Portugal é a REN, garantir esse equilíbrio através do seu centro nacional de despacho,.
Quando há um desequilíbrio, isso leva a uma oscilação da frequência da rede (normalmente 50 Hz). Se a produção for superior ao consumo, a frequência sobe; se for inferior, a frequência desce. Esta frequência é fundamental porque as massas girantes (turbinas que geram eletricidade em centrais térmicas, hídricas) giram sincronizadas com a frequência da rede.
Os operadores têm controlo sobre ligar e desligar centrais consoante as necessidades de consumo. Garantindo assim que a produção iguala o consumo.
Como muito se tem falado, tudo indica que “desapareceram” 15GW de produção do lado espanhol. Como termo de comparação, isto equivale a cerca do dobro do consumo de Portugal inteiro em hora de ponta. Essa perda de produção pode dever-se a múltiplos fatores, como por exemplo, linhas de transportes que saíram de serviço por disparos de disjuntores. Esta queda instantânea na produção levou a uma queda de quase 0,4% na frequência da rede ibérica — o que é bastante crítico do ponto de vista da estabilidade e segurança da rede.
Quando o desvio da frequência é grande, como o que tivemos, os chamados sistemas de proteção da rede são ativados e disparam os disjuntores da rede de Muito Alta Tensão. Se houver um dessincronismo total, é necessário reiniciar o sistema do zero.
Sim e não... As proteções são calibradas para dispararem de forma sequencial, tentando isolar o problema da rede e assim evitar que esta seja afetada. Exemplo disso é o chamado deslastre sequência de carga, isto é, vão-se desligando clientes de forma sequencial baixando o consumo até que este fique igual à “nova produção”.
Acontece que as calibrações dos sistemas de proteção são processos ultracomplexos onde há apenas uma maneira de ”fazer a coisa bem” e muitas de a “fazer mal”. Podem acontecer epifenómenos com configurações tão peculiares e raras que as proteções não conseguem atuar com eficácia. Quando assim é, pode haver um dessincronismo total da frequência e todo o sistema cair - blackout.
Quando todo o sistema fica sem energia, é necessário recorrer a centrais capazes de arrancar do zero sem estarem alimentadas energeticamente, no chamado black start.
Depois, de forma gradual, vão-se ligando cargas e outras centrais, sempre de forma sincronizada com a rede. Este processo é bastante complexo e sensível, porque se entrar demasiada carga ou demasiada produção de uma só vez, a frequência volta a oscilar — e é preciso começar tudo do zero novamente. Daí o restabelecimento poder demorar tanto tempo.
No caso português as centrais com black start são a termoelétrica a gás da Tapada do Outeiro e a barragem de Castelo de Bode. Sendo que já estavam previstos investimentos nas barragens do Alqueva e Baixo Sabor para as dotar de capacidade de black start e assim maximizar a capacidade de resposta a incidentes deste tipo.
Vimos neste período muitas pessoas a colocar questões como: Porque é que estávamos a importar energia? Estamos dependentes de Espanha energeticamente? O abandono do carvão deixou-nos fragilizados? Teria sido diferente se a REN fosse pública?
A decisão de importar/exportar energia não se pode pôr em termos tão simples pois Portugal e Espanha estão integrados num mercado ibérico de energia (MIBEL), ou seja, do ponto de vista de produção é como se fossemos uma só rede onde os produtores que venderem energia mais barato são os que são ligados à rede, sejam eles do lado de cá ou de lá (limitado claro por questões técnicas da capacidade de interligação entre as regiões).
Não, somos autossuficientes, mas estamos interligados, para o bem e para o mal. No geral esta interligação torna-nos mais resilientes e estáveis, pois, quando há problemas em Portugal, a rede espanhola ajuda-nos “puxando-nos para cima”, e vice-versa. Porém, numa situação limite como a desta semana, a “quebra” em Espanha foi tão grande que nos fez a todos cair. Por isso mesmo é que fortalecer a ligação ibérica às redes energéticas francesa e marroquina só tornará a nossa rede mais segura e resiliente.
Não necessariamente, uma vez que, apesar de oferecerem maior inércia à rede, nada garantiria que seria suficiente para resistir ao abalo. Além disso, tendo em conta o modelo de mercado atual seria pouco provável que numa altura de grande oferta renovável tivéssemos as centrais a carvão ligadas a produzir ou como capacidade de entregar imediatamente a quantidade de energia que estávamos a importar.
Independentemente do carácter publico ou privado, o processo de gestão e restabelecimento da rede depois de um blackout é um processo técnico, muito bem documentado e com procedimentos bem definidos. Em termos estritamente operacionais, o processo teria sido exatamente o mesmo.
Do ponto de vista técnico, será reunido pela REN (como sempre) um GAI – Gabinete de Análise de Incidentes, que nos permitirá perceber ao certo e sem especulações porquê e o quê que aconteceu? E, acima de tudo, o que podemos aprender para o futuro com este apagão?
Sem dúvida que esta situação pode desencadear a discussão sobre algumas decisões políticas tomadas nos últimos anos: fará sentido rever o modelo de mercado de energia? Será seguro o Estado ser apenas espectador relativamente à operação da rede de transporte? Os investimentos estratégicos no desenvolvimento da rede deveriam ter mais influencia do governo central?. No entanto, essas serão discussões diferentes e para outros fóruns.
Independentemente destas questões políticas creio que não faz sentido pôr tudo em causa devido ao ocorrido. Temos uma rede segura e com uma taxa de interrupção de serviço baixa. É preciso entender que por vezes há contingências que a engenharia não consegue antecipar e, na minha opinião, um incidente de 12h a cada 25 anos é algo que, apesar de indesejável, é tolerável desde que os planos de contingência funcionem.
A perfeição não existe, mas a preparação sim — e os nossos técnicos e sistema mostraram estar preparados para o imprevisto.
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