Geração E

“A cortesia está cara”: em ‘piloto automático’, estamos mais distantes de quem nos serve diariamente

“A cortesia está cara”: em ‘piloto automático’, estamos mais distantes de quem nos serve diariamente

Vasco Avides Moreira

Doutorado e investigador em Ciências da Comunicação

À medida que nos afastamos dos outros na cortesia, perdemos a noção do cuidado para com o outro, pelo que nos isolamos num mundo cada vez mais centrado em nós próprios

O preço da cortesia nas relações transacionais do nosso quotidiano está alto, mas não precisa de estar. Não é o mercado que o controla, mas sim nós próprios de forma individual e consciente. O apreço que damos hoje a quem nos serve pode ser o apreço que amanhã queremos receber quando servimos outros. É um valor nobre de civilidade e respeito, que se traduz em normas implícitas de convivência social.

A cortesia não é mais do que o cuidado no trato com alguém. É interessante, porque a palavra está embutida numa certa modéstia e discrição. Parece simples, mas não o é: implica trabalhar a empatia para que seja possível captar o outro que interage connosco. Acontece que a cortesia, tal como o preço dos alimentos, dos medicamentos ou de um mero café, está cara.

Uma das técnicas de investigação social com a qual tenho aprendido a trabalhar ao longo do meu percurso enquanto investigador é a observação participante. O observador partilha, na medida do possível, das atividades, ocasiões, interesses e afetos de um grupo de pessoas. Em entrevistas — técnica de análise qualitativa que mais tenho utilizado — a observação participante é fundamental como complemento à entrevista em si. Desta forma, o investigador tenta manter um espírito crítico e isenção científica, enquanto se tenta adequar às características do grupo que analisa.

A observação participante é uma técnica utilizada na investigação, mas pode ser também ser vista como uma competência relacionada com o comportamento humano, como são os casos da flexibilidade e da confiança, valorizadas no mercado de trabalho. Com o aperfeiçoamento da observação participante, pode-se estar, em contextos de interação social, mais atento. Isto pode permitir descodificar determinadas atitudes, ainda que estas não sejam percetíveis à superfície.

Um exercício que tenho feito através da prática da observação participante é o de projetar esta técnica para contextos fora daqueles que se inserem num estudo com uma amostra específica que tem determinadas características. Desta forma, é possível empreender uma tentativa de captar melhor aquilo que está ao nosso redor. Nessa envolvente, e em ambientes tão diferenciados como são todos os que frequentamos nas nossas rotinas, há um denominador comum a ser pensado: a cortesia para com aqueles com quem desenvolvemos uma relação humana que ultrapassa a ideia de mercado.

Num único dia, podem ser vários os lugares que frequentamos e nos quais estabelecemos relações ‘transacionais’: supermercado, farmácia, restaurante, ginásio, e tantos outros que poderão fazer parte das rotinas diferenciadas de cada um. Numa relação que decorre cada vez mais de uma realidade subjugada pelo mercado, é desenvolvida — sem o devido esforço e atenção — uma indiferença, uma apatia para com quem está do outro lado para nos servir naquele momento, podendo esta correr o perigo de ser apenas percetível unilateralmente. Prolifera a falta de tempo e o multitasking, numa tentativa simultânea de responder a mensagens ou de ver a atividade nas redes sociais ao mesmo tempo que a interação transacional se concretiza.

As expectativas de quem está do outro lado, a servir, são de um apreço inerente ao ser humano, para o qual a cortesia é fundamental. Desse outro lado não há sequer a possibilidade de uma igual interação, caso contrário esta põe em causa a segurança do emprego. Cria-se assim uma relação desigual, na qual se gere — ainda que de forma involuntária — um jogo de poder que, com o tempo, desgasta; levando a que a cortesia do lado do servidor não passe, a determinada altura, de uma performance, que poderia não o ser caso a cortesia fosse recíproca e contínua.

Sentimentos negativos associados à falta de cortesia reproduzem-se depois em contextos nos quais quem está a servir transita para o papel inverso, tornando as relações humanas cada vez mais distantes e frias. Há um efeito bola de neve que nada mais faz do que promover a solidão. Porque à medida que nos afastamos dos outros na cortesia, perdemos a noção do cuidado para com o outro, pelo que nos isolamos num mundo cada vez mais centrado em nós próprios. Damos quando o mercado nos obriga a dar, tiramos quando o mercado nos deixa tirar.

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