Em todo o lado se ouve e lê, constantemente, a expressão “masculinidade tóxica”. A meu ver, a generalização deste termo — por muito que seja trazido à conversa de forma quase sempre pertinente — faz com que se fale pouco da masculinidade e da feminilidade como conceitos complexos. Ora, o conceito de masculinidade não tem só uma fórmula, assim como acontece com o de feminilidade. Nem toda a masculinidade é tóxica. A verdade é que o termo mais correto a ser usado, em vez de “masculinidade tóxica”, é “masculinidade hegemónica” — ou tradicional, para simplificar. Algo ‘hegemónico’ é algo que é considerado superior, que tem vantagem, que exerce domínio. Quando se fala de “masculinidade tóxica” é exatamente isso que se quer retratar. No entanto, ao justapor o adjetivo “tóxico” sempre que se fala de “masculinidade”, não estaremos a reduzir a vivência do que pode ser a masculinidade? Nem toda a masculinidade tem de ser tóxica.
Desta forma, é importante perceber que é possível viver-se como homem sem que isso seja nocivo. Recordemos que quando se fala de masculinidade hegemónica, estamos a falar do padrão de género masculino, limitativo, que prende os homens a pré-conceitos não só nocivos para si mesmos, como também para as pessoas à sua volta, sejam familiares, conhecidas ou desconhecidas. Estamos a falar da vivência de uma masculinidade hegemónica que quer que os homens não expressem sentimentos de vulnerabilidade, que os vê como o género mais forte, que acha que ser homossexual faz de um homem menos homem; estamos a falar do mito da virilidade, da origem de tanta violência. Este padrão social, conhecido comummente como “masculinidade tóxica”, limita a experiência de mundo que a grande maioria dos homens tem, ao mesmo tempo que prende as mulheres ao padrão social feminino. Assim como o padrão social tradicional masculino é nocivo, o feminino também. A ideia da fragilidade, da menina bem-comportada, da mulher que não incomoda, da submissa, diminui a presença das mulheres a um mero ornamento social. A divisão limitativa binária é filha do Patriarcado, desta forma de ver o mundo que hierarquiza o poder, que atribui uma superioridade de poder ao homem como um direito por defeito; e que permite uma vulnerabilidade emocional exclusivamente às mulheres (à exceção da raiva e à proteção física reativa). Esta construção social limita a experiência do mundo para todas as pessoas sem excepção, como se só houvesse dois tipos de lentes de comportamento perante a vida.
Um homem não é menos homem porque chora em público e sabe que produto é mais indicado para limpar o fogão. Uma mulher não é menos mulher se for culturista e não souber cozinhar. Um homem não é menos homem se fizer tricô. Uma mulher não é menos mulher se fizer escalada e gostar de ver futebol. Um homem não é menos homem se for gay. Uma mulher não é menos mulher se for lésbica.
Nunca se deve negar um gosto, um passatempo, um emprego para o qual tem capacidades, por não os achar indicados para determinado género. Se um homem quer aprender a bordar, por que razão não há-de o fazer? Parece-me óbvio, mas ainda assim o mencionarei, que o facto de um homem ter um passatempo ou um emprego que é considerado pertencente à esfera de padrão de género feminino não define nem altera a orientação sexual dele. (E o mesmo acontece quando uma mulher tem um passatempo ou emprego considerado socialmente como sendo da esfera masculina).
Por muito que isto seja verdade, é importante perceber que estes padrões sociais binários de género, estas ideias pré-concebidas do que faz parte do feminino e do masculino existem e não há como negar. É o facto de tal estar tão vincado no pensamento sobre a construção de sociedade que faz com que sejam feitas algumas perguntas sem nexo — muitas vezes sem maldade, mas que acarretam a bagagem típica dos mitos sociais de género —, como, por exemplo, perguntar a uma homem numa relação homossexual “quem é a mulher da relação?”.
O pensamento relativo à sociedade ainda é muito construído com base em conceitos ligados à ideia de casal heterossexual, nem que seja só como uma ideia conceptual e não um casal concreto. Há esta ideia de que só homem e mulher se podem completar, ou, melhor dizendo, que só um padrão de género masculino pode completar o padrão de género feminino e vice-versa. Quando, na verdade, as pessoas simplesmente funcionam quando se complementam, independentemente dos seus gostos poderem estar inseridos em determinada esfera de padrão de género (ou não).
Dito isto, toda a gente deve ter o direito de viver o género com o qual se identifica da forma que lhe aprouver. É possível viver a masculinidade de uma forma saudável. É possível viver a feminilidade de uma forma saudável. Nem toda a masculinidade é tóxica. Para vivermos o mundo em pleno, é necessário desconstruir as noções dos padrões de género, desmanchar as caixinhas sociais e torná-las folhas abertas para fazermos as pinturas que quisermos, com os materiais que melhor nos representarem.
E, já agora, a resposta para a pergunta “quem é a mulher da relação?” numa relação entre homens gay é: ninguém, são literalmente dois homens numa relação. E a conversa acaba aí.
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