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O poder da misoginia Talibã: quem quer restringir a liberdade das mulheres ao máximo, arranja sempre novas formas de o fazer

O poder da misoginia Talibã: quem quer restringir a liberdade das mulheres ao máximo, arranja sempre novas formas de o fazer

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Neste momento, as mulheres no Afeganistão não são tidas como humanas, mas como meras parideiras, propriedade dos seus maridos, sendo que nada mais lhes é permitido

Em 2021, os Talibã retomaram o controlo do Afeganistão, após vinte anos afastados do poder. Recordo que os Talibã são um grupo descrito como um “movimento fundamentalista e nacionalista islâmico”. No entanto, as suas regras não têm retratado a religião Islâmica, mas, antes, são uma deturpação da dita palavra divina, sendo que as leis que têm imposto são ditatoriais e afetam maioritariamente as mulheres. Volto a repetir, não é o Alcorão que está a ditar estas leis, é a misoginia dos Talibã que, para justificarem os seus atos, contorcem a retórica religiosa, transformando-a numa ditadura misógina. Eles estão ativamente, sem escrúpulos, a tirar a totalidade da liberdade às mulheres.

Segundo o regime Talibã, as mulheres são vistas como uma tentação para os homens, enquadrando-as como um perigo para o ‘vício’. Ora, embora considerem que o dito “vício” é dos homens, as pessoas condenadas a viver sem liberdade são as mulheres. Aliás, os Talibã tanto se focaram em sufocar a liberdade das mulheres que instituíram um ministério “para a propagação da virtude e da prevenção do vício”. Esta preocupação insólita — digna de um auto-beliscão, para confirmar que não estamos a ver um reality show baseado no Handmaid’s Tale (referência usada por Paula Cosme Pinto) — levou a que fossem já implementadas leis mandatórias para as mulheres do Afeganistão. Estas incluem, a título de exemplo: cobrir o seu corpo inteiro, incluindo a cara, quando se encontrarem fora de casa; e não podem falar, cantar ou ler em voz alta em espaços públicos, com o acrescento de que, mesmo na própria casa, estão proibidas de cantar e ler em voz alta. Recordo, ainda, que, em 2021, os Talibã já haviam proibido as mulheres de frequentar o Ensino Secundário e Superior. Tal medida, apresenta uma consequência gravíssima a longo prazo, já que as mulheres só podem receber cuidados de saúde de profissionais de saúde também mulheres. Ora, se as mulheres não se podem formar em medicina e em outras áreas de cuidados de saúde, não haverão mais profissionais de saúde mulheres. Na lista infinita de proibições tendo como alvo a liberdade feminina, podemos igualmente encontrar uma regra que impede a deslocação livre das mulheres, não só na vida corriqueira, mas também considerando que os taxistas estão proibidos de aceitar clientes mulheres sem um acompanhante homem.

Um dos elementos mais afetados em relação à liberdade das mulheres afegãs tem sido a sua voz. Para além do referido acima, recentemente, os Talibã implementaram uma nova lei que proíbe as mulheres afegãs de recitar o Alcorão na presença de outras mulheres em público. A justificação totalmente descabida da parte deles foi comunicada pelo ministro talibã com o cargo do referido ministério “para a propagação da virtude e prevenção do vício” quando este declarou que a voz das mulheres é considerada “awrah”. Tal significa que deve ser escondida, coberta, nunca ouvida em público, mesmo que seja por outras mulheres, mesmo que o intuito seja rezar.

Perante tal cenário de tamanha misoginia e Apartheid de género — como assim chamou Zubaida Akbar, ativista afegã pelos direitos humanos —, seria de esperar que teriam chegado ao limite de probição de liberdade para as mulheres. No entanto, tal não aconteceu. Como noticiado a 28 de dezembro pelo Jornal Expresso, os Talibã proibiram a existência de janelas que tenham vista para casas onde possam haver mulheres. Como se pode ler no diploma divulgado pela televisão afegã Tolo TV:

"Quem construir uma estrutura quando a casa vizinha estiver à distância de uma rua, não poderá instalar janelas voltadas para a casa do vizinho de onde sejam visíveis o pátio ou áreas onde as mulheres possam sentar-se ou movimentar-se"

No caso de edifícios já existentes, se tiverem janelas que dão para imóveis vizinhos, pelo menos com a altura de uma pessoa, as janelas devem ser emparedadas ou cobertas. A justificação do regime talibã segue a retórica já conhecida e falaciosa, dizendo que esta medida existe para “preservar a privacidade e proteger as mulheres de possíveis danos”. Mais uma vez pergunto: se tais possíveis danos são praticados pelos homens, não faria muito mais sentido impor regras aos homens?

Neste momento, as mulheres no Afeganistão não são tidas como humanas, mas como meras parideiras, propriedade dos seus maridos, sendo que nada mais lhes é permitido.

Concluo com uma provocação: este tipo de raciocínio do regime talibã, no seu pico de misoginia, também acontece no nosso dia-a-dia no Ocidente, mas de uma forma mais leve. Quantas e quantas mulheres são consideradas socialmente culpadas de terem sido violadas, porque estavam a usar roupa decotada ou aceitaram ir para a casa do homem? A sociedade generalista ainda atribui culpa às mulheres pelos atos que sofrem pelas mãos dos homens e, do outro lado da moeda, não valoriza casos de assédio contra homens (que também é real e maioritariamente tendo como assediadores outros homens). Mesmo no Ocidente, parece estar instituído socialmente um julgamento misógino “para a propagação da virtude e prevenção do vício”.

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