Na sexta-feira, dia 10 de outubro, na Livraria Buchholz, foi lançado o livro “Dar e Receber Amor em Todas as Suas Formas — Guia para pais de crianças e jovens LGBTQIA+, sobre como lidar com medos, inseguranças e dúvidas. Este livro foi coordenado pela AMPLOS (Associação de Mães e Pais Pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género) e assinado pela jornalista Sara Dias Oliveira. Trata-se, tal e qual como diz o subtítulo, de um mapa para os pais que são apanhados de surpresa, para que possam garantir que os filhos, filhas e filhes LGBTQIA+ se sintam amados/as/es e acompanhadas/os/es.
Como seria de esperar, o livro foi alvo de críticas descabidas por parte de grupos anti-LGBT, nomeadamente o Habeas Corpus e o partido Ergue-te, que tentaram censurar o evento de lançamento. O jornalista Bernardo Mendonça esteve no local e relatou o sucedido, na sua newsletter intitulada “O circo do ódio é que dá canal”, com as suas habituais palavras assertivas.
No dia seguinte ao evento, o chefe do grupo Rui da Fonseca e Castro lançou um vídeo no chat do Telegram do Habeas Corpus, onde, com a sua postura sempre muito séria e ironicamente calma, revelou “os objetivos da ação de ontem”. Podem encontrar o discurso transcrito na íntegra no final deste artigo. Seguidamente, irei desconstruir as acusações de Rui da Fonseca e Castro contra a AMPLOS.
“A AMPLOS é uma associação LGBTQIA+, e por aí fora, que vive do dinheiro público, vive do dinheiro dos nossos impostos”
A AMPLOS não tem uma fatia de Orçamento do Estado – a associação existe há 15 anos e só tem um pequeno apoio há 3 anos. Esse pequeno apoio que tem vem da Secretaria de Estado da Igualdade, ao qual têm de concorrer. É com este apoio que consegue manter a sua psicóloga e formadora, o arrendamento de um escritório para as suas funções e uma pessoa em part-time com funções administrativas. A AMPLOS vive maioritariamente de doações esporádicas e de sócios com doações regulares. Desta forma, infelizmente, a AMPLOS não vive do dinheiro dos nossos impostos. Antes fosse, que esse dinheiro estaria bem aplicado, já que é essencial haver formação nas escolas, para professores, pais, profissionais de saúde, para tratarem com dignidade e conhecimento as pessoas LGBTQIA+. A AMPLOS, atualmente, é a única associação em Portugal que se dirige aos pais. A família tem, comprovadamente, um papel fulcral na saúde mental das crianças e jovens LGBTQIA+.
“dedica-se à estigmatização da família e que promove a degeneração e a homossexualização das crianças e dos jovens”
Nenhuma associação que protege pessoas LGBTQIA+ quer estigmatizar a família, nem homossexualizar ninguém.
Antes de mais, é preciso repensarmos a definição de família. Família é onde há acolhimento e amor. Cada vez há mais pais e mães solteiras, cada vez há mais madrastas e padastros, e cada vez há mais famílias queer que vivem com amor e que cuidam com respeito e carinho dos filhos, filhas. Ninguém quer estigmatizar a família, mas sim redefinir o que isso significa. Uma família tradicional (leia-se “casal cisgénero, heterossexual com filhos”) é boa se nela houver amor incondicional, liberdade e respeito. Porque, o que realmente importa é que haja famílias felizes. Se são tradicionais ou não, é um fator secundário.
Em segundo lugar, a orientação sexual não é algo que se escolha ou se promova. Aliás, a AMPLOS apoia pais e mães com filhas, filhos e filhes LGBTQIA+, a AMPLOS não dá workshops sobre como “tornar” filhos e filhas gays, lésbicas ou trans. Haja paciência e informação.
“nos degenerados, daquelas que não têm família, que não têm onde ir dormir, que dormem todos juntos, que se drogam. (...) São pessoas que se desaparecerem ninguém dá conta. Não têm importância nenhuma, mas são instrumentalizados por estas associações. São instrumentalizados por quem tem o poder financeiro e por quem quer destruir a nossa sociedade.”
Rui da Fonseca e Castro chama às pessoas LGBTQIA+ “degenerados”, mas depois queixa-se de como os elementos do Habeas Corpus e do Ergue-te foram insultados. No mínimo, irónico. Diz que são estes “degenerados” que estragam a sociedade. Ora, caro Rui, as pessoas LGBTQIA+ fazem parte da sociedade, quer queira, quer não, porque a sociedade somos todos nós. A diferença é que antes tinham de andar sempre escondidas, enquanto hoje podem lançar livros e ir a eventos. Sempre houve diferentes orientações sexuais e identidades de género, mesmo quando era ilegal (e ainda o é em muitos países).
As pessoas LGBTQIA+ não são instrumentalizadas pelas associações, mas antes apoiadas. Está na altura destes grupos de extrema-direita deixarem de projetar os seus objetivos de querer chegar ao poder. Há associações, como a AMPLOS, que realmente o único poder que procuram é poder ajudar a construir famílias que são regidas pelo amor incondicional, e não pelo abandono, pelo preconceito ou pelo trauma.
Para além destes há, ainda, outros dois argumentos comummente utilizados por estes grupos, sobre os quais falo de seguida.
Argumento comum número 1: “LGBT mata”
Os dados das taxas de tentativa e efetivo suicídio dentro da comunidade são contorcidos de forma a que se ache que uma pessoa LGBT pode querer acabar a sua vida por ser LGBT, quando essa não é a narrativa real: uma pessoa LGBT corre maior risco de suicídio por causa da falta de aceitação da sociedade e da própria família. Não é ser LGBTQ+ que mata, é a discriminação.
Mais digo, um adolescente gay não é menos gay só porque a lei o proíbe. Uma adolescente lésbica não passa a ser hetero porque a família a criou “para ser hetero”. É tão natural ser hetero como homossexual. E ser trans não faz de ninguém menos válido, não faz de uma vida menos valiosa, nem deve ser justificação para uma pessoa ter menos acesso a cuidados de saúde (como ainda acontece).
Argumento comum número 2: “LGBT não procria”
Quanto à noção de ser gay ou lésbica como não natural porque não procria, esse argumento é facilmente posto a descoberto como falácia. Há muitos casais heterossexuais com problemas de fertilidade e isso não faz deles menos válidos. Há casais hetero que, para serem pais, recorrem a tratamentos de IVF ou adotam. Isso não faz deles menos pais. Além disso, ainda há casais queer que conseguem procriar através de relações sexuais. Por exemplo, é possível que um homem trans fértil com útero e um homem cis fértil consigam procriar.
Ora, como vemos, não é a capacidade de procriar naturalmente que faz de alguém mais ou menos válido, pois a possibilidade ou impossibilidade de procriar de forma natural não está automaticamente relacionado com a sua orientação sexual ou identidade de género dos elementos do casal.
Um nota final
Se não gostam de ver dois homens ou duas mulheres a dar um beijo na rua, quem pode ir para casa são vocês. Em vossa casa “não vêem dessas coisas”.
Um abraço muito grande a todos os pais que, mesmo com dúvidas, mesmo com medos, abraçam os seus filhos, filhas, filhes incondicionalmente. Muito obrigada à AMPLOS pelo trabalho espetacular que faz.
Discurso confuso e integral de Rui da Fonseca e Castro
“Teve ontem lugar mais uma ação da Habeas Corpus e do Ergue-te, desta feita no âmbito da apresentação de um livro da Amplos, que teria lugar na livraria Buchholz, em Lisboa, a partir das 18:30. A Amplos é uma associação LGBTQIA+, e por aí fora, que vive do dinheiro público, vive do dinheiro dos nossos imposto, ou seja, vive do nosso dinheiro e que se dedica-se à estigmatização da família e que promove a degeneração e a homossexualização das crianças e dos jovens. E, portanto, nós pretendemos estar presentes nessa apresentação para fazer perguntas, não era para boicotar, era para fazer perguntas e iríamos aguardar pelo momento oficialmente aberto para esse efeito. Sabíamos, no entanto, que a partir do momento em que anunciássemos a nossa presença que seriam enviados esforços para que nós não pudéssemos entrar no recinto da livraria, mesmo que para tanto se tivesse de usar a mentira, como foi feito.
As entidades envolvidas, a livraria e a Amplos usaram a mentira para conseguir a presença de elementos da PSP no local. Mas não foi a PSP que nos impediu de entrar no recinto. A PSP não poderia impedir-nos de entrar pacificamente num recinto aberto ao público, para estarmos presentes num evento aberto ao público. Quem nos impediu de entrar foram elementos civis, que inclusivamente, estavam a fazer segurança privada — tenho de ir verificar se efetivamente existe algum tipo de responsabilidade que se possa assacar à livraria Buchholz —, e elementos degenerados que se juntaram à entrada da livraria e que depois entraram em confronto.
A ação foi um grande sucesso, foi um grande sucesso porque a finalidade desta ação era justamente demonstrar, por um lado, as mentiras da comunicação social. Hoje em dia a comunicação social não se limita a dizer meias verdades, mente compulsivamente. Sinceramente, não sei como jornalistas da comunicação social convencional conseguem dormir, não percebo isso, enfim, há pessoas que roubam e que matam, portanto, provavelmente, eles devem sentir-se uns anjinhos.
Por outro lado, a grande finalidade desta ação era demonstrar, afinal, quem é que são os violentos. Nós [Habeas Corpus e Ergue-te] nunca somos violentos e ontem mostramos que a violência está do outro lado. A violência está nos grupos que orbitam em torno destas associações. Nos grupos que orbitam em torno do Bloco de Esquerda, nos degenerados, daquelas que não têm família, que não têm onde ir dormir, que dormem todos juntos, que se drogam e isso aconteceu. Não apenas a violência verbal, mas como também a violência física. Cuspiram, babaram-se. Agrediram a polícia, chamaram nomes, insultaram as pessoas presentes da pior forma possível. E, portanto, foi um grande sucesso, porque era esse justamente o nosso objetivo, era mostrar que estes degenerados são efetivamente violentos. São pessoas que se desaparecerem ninguém dá conta. Não têm importância nenhuma, mas são instrumentalizados por estas associações. São instrumentalizados por quem tem o poder financeiro e por quem quer destruir a nossa sociedade. É esta a gente que está por trás destas associações como é a Amplos. E isso foi ontem cabalmente demonstrado. Obrigado, um bom dia, até breve.”