Geração E

Habitação: o mercado livre que nos prende à incerteza e desigualdade

Habitação: o mercado livre que nos prende à incerteza e desigualdade

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Ter de lutar pelo direito a ter casa quando se trabalha 8 horas por dia, é um dos exemplos sociais mais descritivos de injustiça e desigualdade. O mercado imobiliário não pode ser livre, porque ao sê-lo, está a fazer com que as pessoas estejam presas à incerteza. Precisamos de uma regulamentação que tenha como prioridade a qualidade de vida da população geral, ao invés de prioritizar o capital

No último sábado, houve manifestações em todo o país pelo direito a ter casa para viver. As manifestações em 22 cidades foram promovidas em união por vários projetos, nomeadamente o projeto Casa Para Viver, movimento Porta a Porta, Referendo pela Habitação, Projecto Ruído, Vida Justa e 1º Esquerdo.

A verdade inegável é que o preço das rendas está num patamar absurdo, estando estas totalmente desfasadas dos rendimentos dos portugueses. É incrivelmente cruel como o preço descabido das rendas está a mandar para fora da cidade quem as faz funcionar. Os transportes estão sobrelotados e as pessoas exaustas, tanto de cansaço como de preocupações. É igualmente de realçar que, na enorme maioria dos casos, a qualidade das habitações não melhorou, muitas vezes piorou, mas o preço desses mesmos imóveis aumentou. Aliás, basta uma mera viagem virtual pelos anúncios dos imóveis disponíveis em sites a eles destinados, para se denotar um notável descaramento por parte dos proprietários dos imóveis. A título de exemplo, veja-se estes três anúncios, dos mais baratos, do concelho do Porto e Lisboa:

  • Um T0 nos Aliados de 15m² a 500€;
  • T0 nas Antas, que se trata de um sótão, tendo como único acesso as escadas que se veem na imagem;
  • E o espaço com renda mais baixa no concelho de Lisboa com 17m², a 689€ por mês.

Quando decides ir morar com o namorado/a por causa da renda

Poder viver sozinha/o tornou-se um privilégio ainda maior. A renda de um T1 nas grandes cidades é na generalidade acima dos 800€ (é mesmo muito raro o valor ser menor nas cidades do Porto e Lisboa), quando 65% dos jovens recebem menos de 1000€ por mês (de acordo com o documento elaborado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, apresentado na Concertação Social, em 2022). Ao valor da renda acresce a conta de eletricidade, água e internet, para além dos transportes, supermercado, e atividades de lazer. Como é que alguém com rendimentos de 1000€ mensais se pode dar ao luxo de querer a sua independência habitacional (sem meros colegas de casa) sem estar numa relação? E não comecem com a lengalenga de que o co-living é a trend do futuro, porque isso é vestir de ovelha o lobo do mercado livre especulativo do imobiliário.

Quando o casal já está separado, mas vivem juntos por causa da renda

Cada vez é mais comum ouvir esta frase em encontros: “eu e o meu/a minha namorado/a estamos separados, mas ainda vivemos juntos, por causa do valor das rendas”. Repare-se que, após viver apenas com uma pessoa, com a qual se tem uma relação amorosa, torna-se muito difícil voltar a dividir casa com pessoas aleatórias ou com as quais não se tem uma relação. Há hábitos que já estão enraizados, rotinas criadas que dificultam a adaptação.

Esta dificuldade em arranjar uma nova casa, ou ficar na mesma suportando a renda por inteiro é, geralmente, ainda mais difícil para uma mulher — já que há uma grande possibilidade de ela ter um rendimento menor. A situação piora ainda mais quando há filhos, visto que, estatisticamente, na maioria dos casos, é a mulher que fica com a guarda dos filhos. (Por muito que, felizmente, cada vez haja mais casais com guarda partilhada dos filhos). Além disso, a inflação das rendas acarreta um fator gravíssimo em casos de violência doméstica, já que tipicamente é a vítima que procura uma nova habitação.

  • Pessoas em relações infelizes a terem de co-habitar.
  • Jovens com más relações com os pais sem poderem sair de casa.
  • Casais com filhos a ter de co-habitar com colegas de casa para pagarem a renda.
  • Famílias numerosas a viver num T1.
  • Estudantes colocados em universidades longe de casa sem conseguirem arranjar um quarto acessível.
  • Pessoas LGBTQ+ obrigadas a viver na mesma casa dos seus agressores.
  • Vítimas de violência doméstica sem ter uma casa de fuga.
  • Tudo em nome do capital dos investidores do mercado livre do imobiliário?

Quando a fada madrinha é falsa: mora na porta 65 numa relação com o crédito habitação jovem

Dado este panorama tenebroso, em vez de regulamentar o mercado livre, o Estado encontrou medidas que nos tapam o sol com a peneira. A Porta 65 Jovem apoia os jovens no valor do arrendamento da casa, mas não baixa o valor do arrendamento da casa. Esta medida funciona com um concurso que envolve três fatores: a pessoa jovem, o estado e a ansiedade. O apoio tem um prazo, o contrato de arrendamento tem um prazo, o que faz com que a estabilidade nem prazo tenha, porque não existe. A porta 65 não faz com que as rendas parem de subir, assim como o apoio ao crédito habitação jovem não faz com que o preço das casas diminua. Pelo contrário, no mercado livre, quando há mais procura, mas a oferta continua a mesma, o valor do produto aumenta. Não há tetos máximos de valor, só investidores a ganhar cada vez mais e a população geral com cada vez menos qualidade de vida.

O mercado livre trata os imóveis meramente como investimentos. No entanto, a habitação não pode ser vista primeiramente como um investimento, mas sim como uma necessidade humana. Ter de lutar pelo direito a ter casa quando se trabalha 8 horas por dia, é um dos exemplos sociais mais descritivos de injustiça e desigualdade. O mercado imobiliário não pode ser livre, porque ao sê-lo, está a fazer com que as pessoas estejam presas à incerteza. Precisamos de uma regulamentação que tenha como prioridade a qualidade de vida da população geral, ao invés de prioritizar o capital.

As medidas postas em prática até agora não resolvem o problema da habitação, são meros pensos rápidos para uma ferida aberta de osso exposto. Para não magoar os investidores, está-se a pôr em risco a grande maioria da população. Precisamos de medidas que tratem a doença e não meramente os sintomas. Enquanto não forem feitas as perguntas certas sobre como resolver este problema, não encontraremos respostas que, para além de eficazes, sejam eficientes.


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