Geração E

Perderam todos!

Perderam todos!

Bernardo Valente

Professor convidado do ISCSP da Universidade de Lisboa, doutorando em Ciência Política e especialista em Economia Política Internacional

Falta que os líderes dos dois maiores partidos se sentem à mesa e acabem com o circo mediático de mensuração de capital eleitoral, ignorando que acabamos de sair de umas eleições

A configuração partidária da Assembleia da República dá laivos de um Benfica-Sporting sem golos. Tal como no campo, a bola, leia-se o epicentro decisório do xadrez político nacional, acaba sempre por voltar ao meio, numa disputa de terreno acicatada. Já vimos este filme com a eleição de Aguiar-Branco (e Francisco Assis) para a presidência da Assembleia da República perante a possibilidade de um bloqueio institucional e a trama repete-se entre os meandros do Orçamento de Estado. Perante a irredutibilidade negocial dos partidos à direita e à esquerda, a bola perpetua-se no círculo central e vivemos uma sucessão de novas temporadas duma espécie de remake low-budget do Centrão. Centrão esse em que nenhum dos intervenientes quer participar.

A única diferença entre as rondas negociais do orçamento de estado e um bom jogo de futebol é que nas discussões do OE há, de facto, a possibilidade preocupante de ninguém sair vencedor. Nem os portugueses, nem Marcelo Rebelo de Sousa, nem Luís Montenegro, nem Pedro Nuno Santos, nem mesmo André Ventura. Perdemos todos, caso o orçamento seja chumbado na generalidade. Para os portugueses é sinónimo de um país governado em duodécimos, sem fim à vista, uma vez que não se vaticina resolúvel a curto-prazo devido à dificuldade de encontrar uma maioria absoluta em próximos atos eleitorais. Se Montenegro afirmava que os portugueses estão “fartos de birras”, estão ainda mais fartos de atos eleitorais. Acho que todos evitar-mos-íamos eleições de bom-grado num futuro imediato, sob pena de estarmos de forma constante a entrar e sair de crises políticas - de forma constante a entrar e a sair de sufrágios.

Isto remete-nos para o papel do Presidente da República, que terá a perfeita noção que uma terceira dissolução durante os seus mandatos roça o inaceitável. Apraz dizer que, neste momento, o chumbo do orçamento inquieta as noites do PR, pois seria um descalabro em termos de popularidade e um retomar de antigas feridas, que já se tornaram demasiado frequentes desde que se mudou para Belém. Para além disso, agora implicava destruir uma maioria relativa do seu próprio partido, o que pode ajudar a temperar os ímpetos erráticos a que Marcelo nos foi acostumando.

No PSD, Luís Montenegro sabe que o principal responsável pela aprovação ou chumbo do orçamento é…Luís Montenegro. O ónus por um eventual chumbo do orçamento reside no Governo. Isso deve ficar claro. No entanto, se a queda do orçamento e subsequentes novas eleições poderiam parecer um mal menor perante o capital eleitoral da AD, dado o início tranquilo de governação, o último mês encarregou-se de destruir esse otimismo. A contestada nomeação de Maria Luís Albuquerque, a controversa privatização da TAP através de financiamento proveniente da própria, o infeliz momento de Luís Montenegro na lancha de operações no resgate do desastre de helicóptero e a fuga de Vale de Judeus, enfraqueceram a imagem pública deste executivo.

As sondagens tornadas públicas durante a semana passada mostram um equilíbrio em popularidade entre PSD e PS, entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos. Sendo assim, não restam soluções óbvias para o PSD, que não seja ceder à modulação do IRS jovem e do IRC, segundo enunciado pelas ‘linhas vermelhas’ do PS, numa dinâmica de manutenção do poder. Neste caso, o risco de um novo ato eleitoral é bem maior do que os possíveis ganhos para o PSD, daí as demonstrações de abertura para negociar de “boa-fé” na antecâmara da mais recente ronda negocial.

Quanto à situação de Pedro Nuno Santos e do PS, não é drasticamente diferente daquela em que Luís Montenegro se encontra. Perante a incerteza dos resultados de um hipotético sufrágio, PNS terá sido, no meu entender, o mais coerente na disputa das declarações reentristas (vocábulo que advém da nova epidemia política - as reentrés). Estabeleceu linhas vermelhas que não são impeditivas para o Governo, apesar de serem relevantes no contexto do programa político do PSD. No universo das medidas do OE2025, será difícil justificar aos portugueses que o chumbo do orçamento se deveu apenas ao IRS jovem e ao IRC. Apesar das vozes dissonantes sobre que atitude tomar perante o novo orçamento dentro do Partido Socialista, Pedro Nuno Santos respeitou o seu eleitorado ao não chumbar ou aprovar diretamente o orçamento sem trazer o seu contributo, como principal partido da oposição.

PNS sabe que novas eleições podem não ser necessariamente benéficas para as aspirações do PS e para os seus próprios desígnios como secretário-geral do partido socialista. Uma derrota em futuras eleições obrigaria ao partido a repensar o seu futuro e o futuro do seu líder. Dado o equilíbrio nas sondagens e a incerteza que reina neste período proto-eleitoral, ou proto-eleitoralista, o Partido Socialista tem correspondido à “boa fé” do PSD. Prova disso, aceitou sentar-se à mesa na nova ronda negocial apenas com conhecimento do quadro plurianual de despesas públicas, que não continha os cálculos quanto ao saldo estrutural (uma das “linhas vermelhas” enunciadas numa fase inicial). Apesar do circo mediático, existe uma predisposição para negociar, se assim não fosse manter-se-ia irredutível quanto às “linhas vermelhas”, incluindo a que referia a transparência quanto à margem orçamental.

Por sua vez, o Chega, que poderia ter uma participação ativa nestas rondas negociais, dando resposta às necessidades do seu eleitorado, fazendo uso da relevância do seu elevado número de deputados, decidiu não se imiscuir na discussão do orçamento de estado. Entre referendos à imigração e acusações de traição por carta, André Ventura disse tudo e o seu contrário nos últimos meses, tornando-o especialmente imprevisível. Continua a alimentar a narrativa que PSD e PS estão a conspurcar a política portuguesa ao negociarem entre eles (o natural em democracia) no entanto, os restantes partidos, perante a oportunidade, não demonstraram flexibilidade para que esta discussão se estabelecesse a partir de uma configuração mais alargada.

Configuração mais alargada que será obrigatória na discussão na especialidade, onde surgem as colaborações mais inusitadas. Dada a imprevisibilidade do Chega, não seria de estranhar que, depois de acusar Montenegro de traição por aceitar negociar com o PS, agora fosse o próprio André Ventura a concertar posições com o maior partido da oposição (ou com outros ainda mais à esquerda) na especialidade. De todos os atores políticos aqui referidos, talvez André Ventura seja o mais interessado numas novas legislativas, no entanto, após as últimas europeias, não é de estranhar que reine uma ligeira insegurança relativa a ulteriores resultados.

Posto isto, há algumas semanas que é de conhecimento público que a solução é um orçamento viabilizado entre AD e PS, sob pena de mergulharmos em novo momento de intensa instabilidade política e económica (relembro que ainda há o PRR para fazer cumprir e o nosso historial com fundos estruturais e de coesão é terrível, mesmo em períodos de normalidade – imagine-se em duodécimos). Falta que os líderes dos dois maiores partidos se sentem à mesa e acabem com o circo mediático de mensuração de capital eleitoral, ignorando que acabamos de sair de umas eleições, depois de um período de instabilidade e até confusão na divisão de poderes e funções institucionais. Pelo momento económico e geopolítico, este orçamento é o mais importante dos últimos anos e, segundo as contas da receita fiscal e estimativas de lucro, há espaço para modular o IRS jovem e o IRC, para garantir a sustentabilidade das contas do Estado e evitar o agudizar de desigualdades entre grupos sociais. A melhor solução será sempre a que minimiza o número de perdas e, neste caso, há a possibilidade de não perdermos todos!

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