O Partido Socialista tomou um anti-inflamatório. O poder incha as estruturas — de confiança, militância, de pessoas que gravitam à sua volta — e pode criar redomas. Se cada derrota traz uma lição positiva, a desta será a oportunidade para olhar para dentro, arrumar a casa, fazer uma pausa nas cavalgadas vencedoras para refletir, ser humilde.
Pedro Nuno Santos já tinha falado nessa humildade na forma como se atirou à campanha — como homem que erra e lida com os erros —, e os momentos de ‘fragilidade’ até foram apreciados, mas agora esse reconhecimento já não será unipessoal nem levantará suspeitas de ser tático: é imposto e alastra-se a todo um partido. A um PS que ia passar de uma era António Costa para uma era Pedro Nuno Santos em poucas semanas (com um pé na capitalização do legado e outro na autocrítica e olhos no futuro) apenas com um Congresso pelo meio, que nem sequer foi virado para dentro, já estava a pisar a pré-campanha e a apontar às câmaras. Não estou a duvidar das estratégias bem delineadas traçadas pelas cúpulas, mas foi perpassando alguma hesitação entre os apoios de base.
Nem sequer saberíamos se Pedro Nuno Santos teria os ministros da sua confiança ou iria herdar equipas por não ter havido circunstância para ruturas. A promessa era de sangue novo, os nomes que encabeçavam as listas davam sinais diferentes.
O discurso de Pedro Nuno Santos que define a noite eleitoral (é o PS que escolhe assumir a derrota) mostra desprendimento do poder e dá o vislumbre de uma liderança com mais tempo para construir o seu caminho e libertar-se de amarras.
Enquanto Pedro Nuno Santos procura a sua praia, o PS terá também a capacidade de começar a guiar o protesto, a capitalizar o descontentamento e a voltar a chamar eleitorado. Até poderá trazer exatamente a mesma visão para o país em matérias como habitação e economia, o ar é que estará desanuviado.
Era importante que mantivesse o mote do Portugal Inteiro, já que há muitos concelhos fora dos grandes centros onde as pessoas se sentem abandonadas pelos partidos do centrão, e nem os autarcas servem como bastiões ideológicos – às vezes, são indistinguíveis, à nora por terem desafios de governação local mais complexos do que construir coisas e empregar famílias.
A pressa não será amiga desta reflexão do PS e os eleitores serão exigentes.
Exigentes serão também (ou ainda mais) com o PSD, que tem apenas uma missão nada difícil: fazer tudo bem. Até aqui, Montenegro, rodeado por minas, tentou comprometer-se com o mínimo possível para evitar prejuízos, e beneficiou de uma condição que o colocaria sempre mais perto da vitória: não é o PS. Isso já não vai ser suficiente daqui para a frente.
Agora, a governar medida a medida, o escrutínio será absoluto. Será um Governo de um partido com um pin social-democrata, muito provavelmente influenciado por um partido ultraliberal. O algodão não vai enganar: se apresentar resultados e trouxer confiança, os eleitores vão dar-lhe força para governar em melhores condições aritméticas. Se se prostrar perante o Chega, aprovando medidas com grande taxa de rejeição no país (e agora não é uma questão de discurso ou de sentimentos, serão objetivamente votos a favor e contra carimbados nos registos da AR), é engolido num instante.
Apesar das divergências ideológicas que se tenham, há um compromisso de Montenegro de evitar ruturas em que se deve acreditar.
Resumindo: sejam meia dúzia de meses, um ano, dois ou três (quatro duvido), não será numa (não nesta) legislatura que se irá destruir o tecido económico e social do país — do ponto de vista de quem vota à esquerda. Pode perder-se tempo e retroceder nas respostas que precisavam de ser aceleradas (que, no meu entender, passariam muito mais por maior controlo do mercado de habitação do que por uma redução do IRC que não altera a vida das PME, para dar um exemplo), mas é também esse tempo de que o PS precisa para fazer o seu ato de contrição e os partidos à esquerda recuperarem a sua parte da rua.
Uma última nota: o facto de estarmos a sair de umas eleições em que o partido populista prometeu medidas simpáticas (aumentos de pensões, valorização das carreiras, mais apoios) em vez de propostas mais obviamente odiosas (cortar subsídios, “acabar com a mama”, “endireitar as contas”) é um dos melhores elogios que se pode fazer à política económica e financeira do PS. E pode matar a narrativa de que o PS entrega o país nas lonas para o PSD ter de recompor.
A mesma democracia que está ameaçada mostra-se ao mesmo tempo viva, com nuance, equilíbrio de forças, sem perpetuações no poder, recados do povo com participação em máximos e um Presidente da República que tem, finalmente, uma situação política tão rendilhada como costumam ser os seus raciocínios. Estamos vivos.