"Não tenhas medo de salvar uma vida". Foi com este apelo que, no dia 14 de fevereiro de 2023, Simão Correia emocionou as redes sociais ao partilhar a sua história através de um vídeo que sensibilizou o país.
Sentado num banco das ruas de Lisboa, de guitarra na mão, cantava "Até ao Fim", uma canção da sua autoria que depois foi escolhida como forma de apelo à doação de medula óssea. Aos 23 anos, em setembro de 2022, tinha-lhe sido diagnosticada uma leucemia linfoblástica aguda tipo B, e explicava "a diferença entre viver e morrer", ou a importância de encontrar um dador compatível para poder sobreviver. "O transplante poderá ser a minha cura", dizia, com o lema "Juntos vamos conseguir". E conseguiu.
Procurou dadores compatíveis durante meses, mas não foi possível esperar mais e esse mesmo dador acabou por ser alguém que o conhece desde que nasceu: o pai, com 58% de compatibilidade - não o ideal (90 ou 100%), mas o dador possível. Foi internado "no final de abril" do ano passado para se preparar e "se ambientar ao quarto, porque calhava entre feriados e fins de semana", fez o transplante no dia 10 de maio, e, ao fim de 41 dias, teve alta de um internamento que correu "relativamente bem". "Houve dias mais complicados do que outros, as mãos ardiam-me, os pés também, tudo por causa da doença de enxerto contra hospedeiro (DEVH) [complicação que pode ocorrer após um transplante], que foi ligeira. Aliás, é importante que se tenha um bocado essa reação, significa que o meu corpo recebeu bem a medula do meu dador", explicou ao Expresso.
Tudo corria a um bom ritmo, dentro da normalidade, mas o "choque com a realidade", depois da alta hospitalar, acabou por se transformar num verdadeiro pesadelo. Era mais um (grande) obstáculo. O jovem que acabava de sair do hospital após ter sido submetido a um transplante de medula deparava-se pouco tempo depois com uma depressão e sentia que "não era capaz de fazer rigorosamente nada".
"Estive mesmo muito mal, ao ponto de ter tonturas, tremores nas pernas, desmaiar na rua. Não conseguia andar porque desmaiava ou porque as minhas pernas começavam a tremer. Os valores das minhas análises estavam péssimos, longe daqueles que tinha quando tive alta, o que também não ajudava. Estava com hemoglobina muito baixa e com plaquetas muito baixas, ou seja, mesmo a tomar banho e a cortar unhas tinha de ter muito cuidado", revelou. Entrou "numa espécie de burnout" devido ao "acumular de situações".
"Deixei-me engordar muito também por causa dos corticoides. Andava a tomar 80 mg por dia. Toda a medicação, mais a privação de sono, porque fiquei 15 dias a três semanas a dormir duas horas por noite, bem como o cansaço do transplante e dos 41 dias de pós-transplante, fizeram com que a minha cabeça não aguentasse". Então, para contrariar mais uma doença, foi acompanhado por um neurologista, que disse que "estava tudo bem", por uma psiquiatra e por uma psicóloga. "Infelizmente o acompanhamento psicológico no IPO é muito fraco, porque é um profissional para muitos pacientes", sublinhou.
Foram praticamente três meses à procura de si próprio. Lembra-se que o pai teve de lhe dar comida à boca porque não era capaz de comer por ele. Conseguia dizer apenas poucas palavras seguidas. Chegava ao fim da frase e já não se lembrava da primeira palavra que tinha dito. Tremia muito, gaguejava bastante, não conseguia cantar. Tinha muitas falhas de memória. Era assim que Simão se sentia. Até que toda a medicação, aliada à força e ao apoio dado pela família, fê-lo sentir-se, aos poucos, novamente o Simão que todos conheciam.
"A recuperação foi muito à base de medicação, mas tive muito apoio por parte da minha família, de grandes amigos, e ao fim de três meses comecei a sentir-me novamente eu, aos poucos. Entretanto já passaram oito ou nove meses do transplante e as coisas já estão muito mais alinhadas. Já consigo ter um discurso normal".
Mas, para controlar os valores muito baixos que apresentava nas análises clínicas, ainda teve de ser submetido a um segundo transplante, mais concretamente a um reforço de medula, a 23 de novembro do ano passado, com o pai de Simão a ter de retirar medula novamente. "Esta segunda infusão foi só com umas células específicas da medula óssea. Simplesmente o enxerto de medula era demasiado fraquinho para o meu corpo, daí os valores terem baixado tão radicalmente", explicou, garantindo, porém, que se tem sentido cada vez melhor. Agora é deitar para trás das costas mais uma fase daquele que foi "o período mais difícil" da sua vida.
A música tem agora um significado diferente
Durante a recuperação, no pós-transplante, era muito complicado para Simão tocar guitarra e cantar. Além de estar muito mais frágil, tinha "pouca capacidade respiratória" e muitos tremores na voz, nas mãos, nas pernas, e também muita falta de confiança nele próprio e nas suas capacidades. Os tratamentos afetavam tudo, relata.
Afetavam-no tanto que começou a olhar para a música de maneira diferente. "Nunca senti que a música me abandonou, mas fui eu que abandonei um bocadinho a música. Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida. Em alternativa, dava-me muita calma ouvir determinadas canções. Tenho alguns artistas e músicas que me marcaram bastante. Lembro-me da 'Little Blue', do Jacob Collier, que é um abraço à nossa alma. É quase como se alguém nos dissesse 'vamos continuar', 'bola para a frente'", sublinhou Simão, que não esconde o facto de se ter inspirado na melodia e na letra das canções para se agarrar à vida.
"Passei a olhar para a música de uma maneira diferente, mais madura, porque foi quase um retiro. Tive de deixar a música por completo e as únicas capacidades que eu tinha era ouvir. Era sentir aquilo que a música me transmitia. A música conseguiu estar presente de uma forma mais simples, porque afinal é na simplicidade das coisas que o mundo se torna mais bonito e mais fácil de entender. E, para mim, a música foi isso, foi um abraço quente, foi clareza, foi uma chávena de chá durante esse período. Não era o artista, mas sim o ouvinte", reconheceu, deixando claro que a nossa cabeça influencia muito a recuperação. "Foi uma aventura que me ensinou muitas coisas e sinto que cresci muito em relação à fragilidade humana e o quão importante é a saúde mental e o 'vamos para a frente'. Sinto que esse pensamento pode fazer toda a diferença num tratamento e numa cura de uma doença como a minha".
Agora com os momentos mais duros dados como ultrapassados, a vida segue com um sorriso no rosto e muitos sonhos, um dos quais repleto de bonitas melodias. Simão Correia, agora com 24 anos, tem dois concertos agendados já para este sábado, 17 de fevereiro, e domingo, dia 18, no Auditório Carlos Paredes, em Benfica. Estão ambos esgotados. Depois destes concertos? "Estou com a ideia de lançar o meu primeiro single. Um ou dois originais estou a pensar lançá-los para as plataformas digitais: Spotify, Apple Music, Youtube", revelou ao Expresso.
"Como enriquecimento pessoal e profissional, vou também assistir a um workshop com a Mimi Froes e o Tiago Nacarato em março, através da Creative Studios. Vou continuar a apostar na minha literacia musical, nos meus conhecimentos musicais e continuar a apostar no meu futuro, em singles e produção em estúdios. Coisas um bocadinho mais a sério, porque tem de ser. É isto que eu quero fazer da vida, por isso tem mesmo de ser assim". E é com esta força e determinação que Simão, agenciado pela produtora Estúdio Zeco, de João Só, segue viagem ao som de uma vida que se espera longa e com muitos sonhos concretizados.
Há um ano, Simão cantou no Expresso
Em fevereiro do ano passado, Simão Correia passou pelo podcast “Expresso da Manhã” para contar a sua história e cantar, numa altura em que a Associação Portuguesa Contra a Leucemia tinha lançado uma campanha para aumentar o número de dadores e aumentar as hipóteses de compatibilidade com Simão e muitos outros doentes. "É rápido, é fácil, não custa nada. Simão é a estrela da campanha e utiliza a música para tocar corações e consciências".
Um ano depois, o momento é outro, é de esperança, futuro, sempre com uma mensagem presente: "Não tenhas medo de salvar uma vida".