Geração E

Quem cuida de quem cuida? — pelas pessoas cuidadoras informais

Quem cuida de quem cuida? — pelas pessoas cuidadoras informais

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

O panorama da realidade dos cuidadores informais é um reflexo da desigualdade de acessos no país, tendo em conta as capacidades económicas. É muito diferente cuidar de alguém quando se tem dinheiro para ter ajuda externa permanente e apoio psicológico sem ter de olhar a custos e acesso público; ou estar sozinha na luta, a lidar com a sobrecarga e a desorientação consequente, com um mísero, ou nenhum, apoio do Estado

Há cerca de 1,4 milhões de cuidadores informais em Portugal — com certeza poderá haver mais para lá do registo oficial. Isto corresponde a 10% de toda a população portuguesa. No entanto, só em 2019 foi aprovado o estatuto de Cuidador Informal, tendo sido posto em prática, como projeto piloto, em 30 concelhos de Portugal. Foi apenas em 2022 que foi instituído o Decreto Regulamentar que estabelece os termos e as condições do reconhecimento do estatuto, e as devidas medidas de apoio, para todo o país.

Há cuidadores informais desde que nos conseguimos lembrar, maioritariamente sem apoios, maioritariamente mulheres, que carregam consigo o peso de várias pessoas. Sobre esta questão, Anahit Behrooz afirma que a sociedade tradicional quer limitar a intimidade emocional da mulher no casal e na família, e que convém ao Estado que a família fique a cargo das mulheres da família, porque assim o Estado não tem que criar tantos mecanismos para pessoas dependentes de ajuda. (em “BFFs: The Radical Potential of Female Friendship”)

“[Pedi-lhe para comentar o que Behrooz afirmou] É estúpido o que ela diz, mas é o que acontece. O meu irmão viveu a vida toda a 3km da minha mãe, mas eu é que tive de deixar todos os meus sonhos e carreira para trás porque ele já tem a sua família para cuidar. E eu? Não tenho direito a construir uma?”
L., 40 anos, mudou-se de Lisboa para o Algarve para ser cuidadora informal da mãe.

Claro que isto não invalida que haja pessoas que escolham intencionalmente cuidar dos seus familiares, mas isso não significa que tal não traga repercussões enormes à sua vida. Neste contexto, é importante referir alguns dados, fruto de um inquérito nacional,realizado pela Merck, com o apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais,cujos resultados saíram no início do ano de 2023:

  • 83,3% dos cuidadores informais admitem ter-se sentido em estado de burnout/exaustão emocional em algum momento;
  • 78,5% concordam que o seu estado de saúde mental influencia o desempenho do seu papel de cuidador informal;
  • Cerca de metade dos inquiridos não são capazes de rir e ver o lado positivo como antes;
  • 77,9% reconhecem a necessidade de apoio psicológico, mas menos de metade destes procuram e usufruem deste apoio.
  • 37,4% perderam a vontade de cuidar de si.

O texto está pautado com testemunhos reais de cuidadoras informais e informações disponibilizadas em entrevista pela Associação Cuidadores. Esta associação oferece, entre outras coisas, Apoio Psicológico a cuidadores, na sua sede no Porto e na própria casa dos cuidadores e pessoas cuidadas; Pausas Breves, asseguradas por voluntários, que permitem ao/à cuidador/a um tempo para o autocuidado, descanso ou dedicação a assuntos pessoais; Formação e capacitação sobre saúde mental e boas práticas para cuidar; auxílio na procura e obtenção de recursos comunitários e apoios, tais como para higiene pessoal e alimentação da pessoa cuidada; e até ajuda a preencher os documentos necessários ao pedido do estatuto. Podem encontrar links úteis no fim deste artigo.

O Estatuto

Sendo um estatuto recente, ainda é muito difícil encontrar um equilíbrio de medidas, fazendo com que o acesso a este apoio monetário do Estado seja muito difícil. Não é de admirar que apenas pouco mais de 1% de toda a gente cuidadora informal tenha o estatuto. As regras são muitas, também os papeis a preencher. Se é um estatuto por si só difícil de conseguir, imagine-se o que é ter ainda de preencher imensos papéis, sem nenhuma certeza, sendo que uma cruz no sítio errado significa ter de fazer tudo outra vez ou aceitar a realidade de ser cuidador sem qualquer ajuda monetária do estado. Há muita gente que desiste de pedir o estatuto devido à exaustão durante o processo.

Quando uma família não tem capacidades para suportar os custos de um apoio externo de cuidado continuado, qual é a opção da pessoa senão cuidar ela do familiar que precisa de cuidado?

“O montante do subsídio de apoio é igual à diferença entre a soma dos rendimentos do cuidador informal principal e o valor de referência do subsídio. O montante de referência do subsídio corresponde a 509,26 € (O valor do Indexante dos Apoios Sociais - IAS).” (Segurança Social)

Em 2023, a SIC-Notícias relata que há 14 000 cuidadores informais com estatuto até à data da notícia, e averiguou que, conforme as contas oficiais acima referidas, as pessoas cuidadoras informais recebem, em média, menos de 300€ mensais.

Além disso, para alguém poder ter acesso ao estatuto, tem de ser cuidador principal. Sendo esse o caso, e para a obtenção de subsídio, os rendimentos de referência do agregado familiar do cuidador informal principal têm de ser inferiores a 662,04€ (1,3 vezes o valor do Indexante dos Apoios Sociais – IAS). Este cálculo não é simplificado, estando disponível um exemplo na página da Segurança Social.

“[os custos] são muito maiores que o subsídio de dependência. (...) Por volta dos 1000€, incluindo centro de dia, refeições da Santa Casa da Misericórdia, cuidadora particular duas horas diárias, medicação, fraldas, etc.”
H., 27 anos, cuidadora informal da mãe com demência, Açores

Quem cuida: estereótipos e maiorias

“Os cuidadores informais têm um valor, estaríamos num colapso total do SNS.”
Associação Cuidadores.

O perfil geral de uma pessoa cuidadora é uma mulher com mais de 45 anos que cuida de familiares. No entanto, este não é o único perfil de cuidador. Para além de haver muitas pessoas jovens cuidadoras, é importante referir que há cada vez mais homens que são cuidadores informais e que, por haver um estigma de este ser um trabalho tido como feminino — um agradecimento irónico ao estereótipo social feminino —, muitas vezes têm vergonha de pedir ajuda.

“O impacto sócio-económico e emocional é enorme. O impacto na minha saúde física também foi gigante. Após a morte do meu pai, acabei internada três semanas com uma crise da minha doença auto-imune. Da minha mãe, como não recebia o apoio, não podia parar de trabalhar [ é fotógrafa freelancer numa revista]. Trabalhava o que conseguia e mal dormia de noite.”
J., cuidadora informal da mãe, com cancro terminal, e do pai, com Esclerose Lateral Amiotrófica

Não há somente padrões de definição que nos vêm à cabeça quando se fala das pessoas cuidadoras informais, mas também de pessoas cuidadas, não fossem os seres humanos mestres em criar e recriar padrões mentais. Há uma ideia de que as pessoas cuidadas são as séniors, os pais, os avós, quando muitas vezes são os maridos e os filhos.

“A minha vida é cuidar. O meu marido precisa de acompanhamento permanente, ajuda para tomar banho, alguém que trate de tudo na casa (...). Por norma é tudo emm função dele. (...) Vivemos a 90km do hospital onde ele é seguido”
C., cuidadora do marido com grau de deficiência superior a 90%

Uma coisa é certa, em todos os casos, a pessoa cuidadora tende-se a anular, a não pensar em si mesma, a fazer da sua vida uma entrega completa a outra pessoa. Poderia parecer apenas bonito, se não fosse também um peso emocional (e económico) de duas pessoas numa só.

“Tive apoio da Santa Casa da Misericórdia da área de residência para entrega de refeições. Quanto a apoio de higiene e de limpeza da casa da SCM, o tempo de espera foi de mais de um ano.”
H., 27 anos, cuidadora informal da mãe com demência, Açores

A saúde mental, o autocuidado e o sentimento de culpa da pessoa Cuidadora Informal

As pessoas cuidadoras informais sentem culpa por saírem de casa. Aliás, perdem mesmo vontade de cuidar de si (cerca de 37,4%), já que passam a ter a perceção de que o objetivo da sua vida é cuidar de outra pessoa. É preciso mostrar e fazer acreditar que é mais do que aceitável, é necessário, um/a cuidador/a informal tirar tempo para cuidar de si mesmo/a, de forma a lidar com a sobrecarga que é cuidar de alguém a tempo inteiro. Para tal, é preciso garantir, de forma estatal, que têm a possibilidade de terem um tempo para si, sem descuidar a pessoa que precisa de cuidados. Se o/a cuidador/a não se cuida, como diz a Associação Cuidadores, acaba por ser ele/a a precisar de cuidados. (Daí a importância de iniciativas como a Pausas Breves, da Associação Cuidadores).

Para além da tendência para descuidarem de si mesmas, as pessoas cuidadoras informais também vêem as consequências negativas da condição de cuidadoras na sua vida pessoal. Há um botão de pausa que é pressionado, sem data breve prevista para desbloqueio.

“Não tenho vida pessoal. Os dois inícios de relacionamento que tive o ano passado, não foram em frente, muito por não morar sozinha e não ter uma filha, mas uma mãe que se transformou numa filha.”
L., cuidadora informal da Mãe

Este sentimento de dedicação de vida a outrem não termina com o falecimento da pessoa cuidada. Se, anteriormente, a vida da pessoa cuidadora estava centrada no cuidado de outra pessoa, é natural que se siga uma sensação de falta de sentido de vida. Nesta transição, é necessário realçar a importância do apoio psicológico.

O reflexo de um país desigual no acesso a cuidados

O panorama da realidade dos cuidadores informais é um reflexo da desigualdade de acessos no país, tendo em conta as capacidades económicas. É muito diferente cuidar de alguém quando se tem dinheiro para ter ajuda externa permanente e apoio psicológico sem ter de olhar a custos e acesso público; ou estar sozinha na luta, a lidar com a sobrecarga e a desorientação consequente, com um mísero, ou nenhum, apoio do Estado.

Links Úteis

Portaria n.º 335-A/2023, de 3 de novembro – descanso do/a Cuidador/a.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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