Geração E

“Mãe, pai, desculpem-me, mas desisti do jornalismo”: precariedade, baixos salários e falta de oportunidades afastam jovens da profissão

“Mãe, pai, desculpem-me, mas desisti do jornalismo”: precariedade, baixos salários e falta de oportunidades afastam jovens da profissão
aire images/ GettyImages

Longe vão os tempos em que a maioria dos alunos que estudavam Comunicação queriam ser jornalistas. Entre quem começa na profissão, ou quem já desistiu de tentar, há um diagnóstico comum: não é pelo dinheiro que o fazem. E mesmo recebendo pouco, não há lugar para todos

Não é novidade que o jornalismo enfrenta um período complicado, mas as dificuldades sentidas ganharam agora visibilidade renovada, com a crise no grupo Global Media. A ameaça do despedimento coletivo de até 200 jornalistas numa das maiores empresas portuguesas do setor tem feito os jovens jornalistas colocarem o futuro em perspetiva. Muitos confessam que seguir jornalismo é uma decisão feita com base na paixão pela área e um certo sentido de sacrifício, porque as condições há muito deixaram de ser aliciantes.

Carina Fernandes exerce a profissão de jornalista há três anos e assume-se como uma “exceção à regra a todos os níveis”. Entre os cerca de 50 colegas da sua licenciatura, a jovem foi a primeira a conseguir emprego na área. “Houve mais uma ou duas que fizeram um estágio profissional também numa rádio, mas depois acabou o estágio profissional e foram para a rua”, diz. Carina tem quase a certeza de que continua a ser a única a exercer jornalismo.

Foi através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) que surgiu a oportunidade para um estágio profissional renumerado, durante nove meses, no jornal regional ‘O Interior’. “Acabei o curso e inscrevi-me logo no IEFP e foram eles próprios que me ligaram a dizer que havia uma vaga”, relembra. Quando terminou o período de estágio, convidaram a jovem jornalista, de 23 anos, para continuar a trabalhar com contrato no jornal e na Rádio Altitude.

Carina Fernandes, de 23 anos, jornalista no jornal 'O Interior' e na rádio 'Altitude'

Carina confessa que teve “muita sorte” por ter estado apenas cerca de quatro meses a enviar currículos para conseguir lugar na profissão, cuja situação descreve como sendo “sete cães a um osso”. Em 2023, havia 1.302 vagas disponíveis para entrar numa licenciatura em comunicação social ou equivalente, segundo a Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) . No concelho da Guarda, “existem atualmente duas rádios e dois jornais", afirma a jovem repórter. "Até há pouco tempo eram três jornais, mas entretanto teve de fechar um deles, ou seja, as oportunidades começam a ser muito, muito escassas”, completa.

A inexistência de oportunidades para iniciar uma carreira

A sorte que Carina descreve ter não é partilhada por Carlos Carvalhosa, de 23 anos. Desde que terminou o mestrado, em junho deste ano, esteve, durante quase cinco meses, a enviar currículos incessantemente aos diferentes meios de comunicação social, até ter decidido candidatar-se a um emprego em nada relacionado com o jornalismo. Se recuarmos até ao final do estágio curricular, altura em que também mandou vários e-mails aos media, está há mais de um ano sem conseguir um emprego na área.

O jovem fez dois estágios curriculares, um na agência noticiosa Lusa e outro na RTP, mas não lhe foi dada a oportunidade de permanecer em nenhuma destas redações. No último estágio foi lhe dada a opção de fazer mais três meses de estágio não renumerado. “As despesas que eu ia ter face à minha não-remuneração eram demasiadas”, explica, acrescentando que “nada garantia que fosse ficar”.

Carlos Carvalhosa, de 23 anos, licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Jornalismo

“Desisti de começar uma carreira no jornalismo... Mãe, pai, desculpem-me, mas é verdade!”, escreveu há dois meses na rede social LinkedIn. Escreveu a publicação para desabafar a frustração por, frequentemente, não obter qualquer resposta aos seus e-mails, ainda que continue a enviá-los regularmente. “Ainda tenho aquele bichinho a dizer-me aqui ‘não desistas ainda, aguenta só mais um bocadinho’ e é o que eu estou a fazer”, revela.

Como ainda não tem o tempo de experiência profissional necessário para obter a carteira de jornalista, há muitas portas que lhe são logo fechadas. Os meios regionais perto do sítio onde vive, em Vila Real, respondem a Carlos que não têm capacidade para o integrar e orientar, mesmo com a possibilidade de parte do estágio profissional ser paga pelo IEFP. “Muitas vezes levei com esta resposta ‘estarmos a aceitar-te para tu depois ficares ao abandono e nós não te conseguirmos ajudar quando tens dúvidas, não vale a pena’”, diz.

Diogo Moniz é outro exemplo de alguém que, pela falta de oportunidades, desistiu do jornalismo. Terminou a licenciatura na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), em Lisboa, e regressou aos Açores, onde nasceu. “Estava à procura de tentar fazer algum estágio dentro de alguma rádio lá dos Açores, da RTP, algo assim”, recorda. Embora houvesse sempre um conhecido que tinha o contacto de algum jornalista nos Açores, Diogo enviava e-mails mas nunca obtinha resposta.

Após dois meses “parado”, Diogo decidiu tirar uma formação em marketing digital, o que lhe permitiu integrar uma empresa dessa área nos Açores. “Portanto, o jornalismo ficou esquecido”. Atualmente, com 24 anos, o jovem frequenta um mestrado em ‘Comunicação Estratégica e Liderança’ e afirma que é quase impossível regressar à tentativa de exercer jornalismo. “Queremos sempre garantir algo mais sustentável para nós e acredito que o marketing seja uma área que nunca vai falhar”, revela ao referir-se à nova ocupação profissional.

Aos 24 anos, Diogo Moniz, licenciado em jornalismo, admite que, provavelmente, nunca vai exercer a profissão

“Não estou arrependido de ter tirado Jornalismo”, sublinha Diogo. “Apesar de ter tido muitas dúvidas e, muitas vezes, ter pensado e ter ficado noites em branco a pensar: Será que é isto que quero? Será que vale a pena? Será que desisto já em vez de continuar?”. Foram a paixão e a importância que reconhece ao jornalismo que o motivaram a concluir o ensino superior, mesmo que os alertas dos professores universitários o fizessem "querer fugir” depois de terminar.

“A atitude de um jovem licenciado também está muito constrangida pelas próprias necessidades do mercado e pela forma como o acesso à profissão está hoje desenhado”, refere Marisa Torres da Silva, professora do departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa.

O acesso a uma vaga para jornalismo é, frequentemente, negado com o argumento de que é necessário experiência profissional. A docente universitária explica que há vários alunos que se sujeitam a “um processo de acumulação de trabalho gratuito” para adquirir essa tal experiência. O acesso à profissão fica vedado aos que “têm possibilidades para fazer estágios não remunerados de forma consecutiva, portanto, no fundo, o exercício da profissão acaba por ser uma situação de privilégio de classe”.

Este acumular de estágios não renumerados cria outro problema: a impossibilidade de aceder à carteira profissional, o título que permite ao jornalista assinar notícias em seu nome. Para pedir a creditação, o recém-licenciado precisa de realizar 12 meses de estágio profissional renumerado, ou 18 meses, caso o candidato não seja licenciado numa área da comunicação social.

Se fosse pelo dinheiro, “a redação estaria praticamente vazia”

Carlos Carvalhosa relembra que os jornalistas com quem trabalhou durante os estágios lhe confessavam que se a escolha de exercer jornalismo fosse financeira, “a redação estaria praticamente vazia”.

Em 2017, quase dois terços dos jornalistas recebiam um ordenado mensal entre os 501 e os 1500 euros e o salário médio líquido situava-se nos 1.113 euros, segundo o relatório “Jornalistas e Condições Laborais: Retrato de uma Profissão em Transformação”. Passado um ano, em 2018, a presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco, afirmava que um terço dos jornalistas em Portugal ganhava menos de 700 euros líquidos, um “salário indigno”. A dirigente relembrou, na época, que a precariedade “não escolhe idades”.

Em agosto de 2023, um acordo entre o Sindicato dos Jornalistas e a Associação Portuguesa de Imprensa firmou a retribuição base considerando os anos de antiguidade na profissão. Um jovem jornalista passaria a receber no mínimo 903 euros brutos, e o valor subiria, ao longo dos anos de experiência, até aos 2.000 euros.

O último relatório, em 2023, dizia que 1.225 euros era a remuneração média líquida dos jornalistas no ativo, ainda assim quase metade (48%) sentia-se inseguro relativamente à sua situação precária e cerca de 12,5% recebia menos de 700 euros. Devido às condições da profissão, perto de metade (48%) dos jornalistas portugueses exibia elevados sinais de esgotamento e cerca de 18% tinham valores elevados ou extremamente elevados de exaustão emocional.

Ao comparar os seis anos que separam estes relatórios, torna-se evidente a perda do poder de compra do jornalista. Entre 2017 e 2023, a inflação em Portugal aumentou 16,1%, enquanto o salário médio líquido de um profissional desta área aumentou em apenas 10,1%.

“Enquanto estudante, dá um bocadinho de medo”, confessa Inês Saldanha, estudante do segundo ano da licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade do Porto. Recorda um estudo que um professor mostrou, onde era descrito que “o jornalista não tem qualidade de vida, a nível de progressão na carreira é muito complicado, a nível salarial também”, mas relembra que é preciso “lutar para fazer algo que nos preencha”.

Inês Saldanha, de 26 anos, confessa que a crise jornalística lhe incute algum receio, mas isso não a desmotiva de ponderar escolher seguir jornalismo

Com 18 anos, a jovem emigrou para a Suíça, até regressar a Portugal, cinco anos depois, com vontade de retomar os estudos. Apaixonada por comunicação, Inês, agora com 26 anos, escolheu Ciências da Comunicação por englobar várias áreas distintas e manter as opções de especialização em aberto. Desde o início sentiu uma paixão por jornalismo, mas confessa estar indecisa entre esta vertente e a multimédia.

Cada vez menos estudantes optam por seguir jornalismo

A indecisão de Inês é comum a outros estudantes que ingressam em Ciências da Comunicação. Marisa Torres da Silva é professora universitária desde 2006, já formou gerações de futuros jornalistas tanto na Universidade Nova de Lisboa, onde ainda leciona, como na Universidade Lusófona, também na capital. Ao longo dos anos, observou uma mudança significativa na escolha de especialização do aluno que ingressa na licenciatura. “A porção mais significativa dos alunos que entram para Ciências da Comunicação, já não quer propriamente jornalismo”, revela. Agora esta especialização está em segundo lugar, ultrapassada pela comunicação estratégica.

Há “alunos que entram no curso com a ideia de seguir jornalismo, mas depois face também ao cenário que lhes é apresentado e face também à possibilidade obviamente legítima de obterem um emprego mais estável e financeiramente mais aliciante, optam por outras áreas”, diz.

Uma realidade também já notada pelo professor Luís António Santos, da Universidade do Minho. “Era comum ser a primeira opção para quase metade de uma turma, e uma turma tem 80 a 90 alunos, e jornalismo, neste momento, é opção para, talvez, um quarto da turma”, descreve. Embora note, em quem está nesta situação, um acrescido “espírito de missão” e uma “vontade grande” de trabalhar no jornalismo, o que não significa que “no passado, não existisse [essa motivação], mas as pessoas não eram postas de forma tão decisiva perante um aperto tão claro”.

Atualmente, existem 25 formações em ensino superior para aqueles que ambicionam obter uma licenciatura na área. Há oito cursos nas universidades públicas, o mesmo número que existe em privadas e no ensino politécnico, estando distribuídos por 13 dos 18 distritos de Portugal Continental. Nas ilhas, não existe formação nesta área.

Distribuição geográfica de Instituições de Ensino Superior que oferecem licenciatura em jornalismo ou equivalente


Ciências da Comunicação é a licenciatura mais comum para acesso ao jornalismo. Com essa mesma designação existem 13 cursos, quase metade dos cursos disponíveis.

Entre 2020 e 2023, a nota do último colocado em licenciaturas em jornalismo ou equivalente aumentou mais de meio valor, superava os 15 valores de média no último ano. Isto se contarmos apenas com as instituições do ensino superior público, as únicas no Concurso Nacional de Acesso.

Média de ingresso em licenciaturas de jornalismo ou equivalente


Luís António Santos, professor há mais de 20 anos e jornalista por mais de uma década, explica que as “universidades nunca conseguem estar a preparar as pessoas para o instantâneo do mercado de trabalho”, mas procuram fomentar “um olhar crítico, um olhar curioso, um olhar permanentemente insatisfeito, e isso é que são as marcas permanentes do trabalho jornalístico”.

Marisa Torres da Silva partilha uma opinião semelhante ao explicar que a licenciatura na Universidade Nova foi reformulada há pouco tempo com o objetivo de “favorecer a emancipação e o pensamento crítico, uma vez que ele é muito necessário para o exercício da profissão” e não de “formatar ou só conferir ou fornecer um conjunto de questões, de competências técnicas”.

Ao analisar os planos de estudos das diferentes licenciaturas, a disciplinas que mais aparece (22) é teoria da comunicação, seguindo-se de disciplinas relacionadas com história, economia, ética, direito, semiótica e disciplinas práticas de jornalismo. A docente da Universidade Nova explica que se tratam de “disciplinas estruturantes”, que conferem “competências, ou constroem um conjunto de saberes”, mas admite que seria benéfico uma disciplina relacionada com literacia mediática, devido ao “cenário extremamente polarizado” e também “muito fragmentado em termos de consumo de informação”.

Falta de prática nas universidades e a importância de participar em projetos extracurriculares

Carlos Carvalhosa, que se licenciou na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, explica que durante o mestrado em jornalismo na Universidade NOVA de Lisboa aprendeu mais sobre jornalismo do que durante a licenciautra. No mestrado, o jovem aprendeu a trabalhar de uma forma mais consistente, ao elaborar peças jornalísticas de forma frequente. Também sublinha a importância de quem ensina serem jornalistas ou docentes que já tenham trabalhado como jornalistas, por serem professores que “estão dentro desta realidade”.

À semelhança de Carlos, Carina Fernandes aponta algumas falhas no plano curricular da sua licenciatura na Universidade da Beira Interior (UBI), na Covilhã. “Eu senti falta, e ainda hoje sinto na minha vida profissional, que na UBI não haja uma única cadeira de inglês ou de línguas no curso todo”, afirma.

A jovem jornalista revela que, em contexto de trabalho, só aplica os conhecimentos que adquiriu em duas disciplinas. A primeira denominava-se webjornalismo, onde aprendeu sobre a transposição das notícias para o online. Técnicas de redação jornalística foi a outra unidade curricular, do primeiro ano, na qual aprendeu a “base daquilo que é o jornalismo para a redação de um artigo”. “Acho que falta muita prática, e é o que ouço também em relação a outros cursos e a outras universidades”, afirma.

Prática não faltou a Diogo Moniz, que estudou na ESCS, do Instituto Politécnico de Lisboa. Quando fez um ano de Erasmus em Universidad Complutense de Madrid, notou que as aulas eram mais teóricas e sentiu que os conhecimentos que adquiriu na sua universidade eram mais úteis. “Conseguimos passar por todas as vertentes do jornalismo”, explica relativamente ao politécnico. E acrescenta que “o segundo e o terceiro ano não param" e “é mesmo capaz de tirar algumas horas de sono”.

“O curso é muito versátil, e nem eu estava à espera que fosse tão versátil”, confessa Inês Saldanha, estudante do segundo ano de Ciências da Comunicação na Universidade do Porto. Versatilidade era, precisamente, o que procurava por entender ser uma característica cada vez mais exigida no jornalismo. “O jornalista não pode ser uma pessoa fechada”, precisa de entender de áreas distintas para melhorar e preparar melhor o seu trabalho, algo que, Inês, sente que a licenciatura lhe proporciona ao ter “cadeiras de tudo”.

Inês Saldanha destaca ainda a participação em atividades extracurriculares, que vai tomando conhecimento através dos professores e que permitem “consolidar aquelas coisas que são dadas nas aulas, muitas vezes a injeção, infelizmente”.

A estudante colabora, sempre que pode, com o JPN-JornalismoPortoNet, um jornal multimédia universitário, onde lhe é exigido que siga os padrões de uma redação jornalística. Também participou no projeto REC - Repórteres em Construção, um projeto de rádio colaborativo entre docentes, alunos e jornalistas. “Sempre fui uma miúda que gostava de escrever, mesmo, na escola a disciplina favorita era o português, sempre li muitos livros, acaba por ser uma coisa mais natural. O áudio, contudo, nunca foi uma coisa que eu tivesse trabalhado muito”, confessa e explica que, no projeto, adquiriu novas competências sobre rádio.

“O jornalismo tem de prestar um serviço público, tem de ser relevante para as pessoas, é uma ideia muito importante, que eu acho que as universidades tentam passar”, defende o professor Luís António Santos, que destaca esta ideia como a mais importante na formação dos jovens jornalistas. Aqueles que ambicionem iniciar uma carreira em jornalismo precisam de ter uma “paixão enorme” e entender que se trata do “cuidado pelos outros”. “Não adianta eu fazer trabalho jornalístico se eu for absolutamente insensível aos outros, se eu for desrespeitoso para com os outros”, diz.

Carina Fernandes admite que pensa, algumas vezes, em desistir, mas nunca concretiza essa decisão por “amor à camisola”. O jornalismo “é uma das grandes bandeiras daquilo que é a democracia, e, cada vez mais, temo que essa democracia esteja a ser posta em causa. Ou seja, quando há um enfraquecimento do jornalismo há mesmo um verdadeiro enfraquecimento também na democracia”.

Texto de Eunice Parreira, editado por Pedro Miguel Coelho

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate