"Se isto é um legado": a opinião de um jovem judeu português sobre o conflito em Gaza
Enquanto judeu, é confrangedor testemunhar os crimes perpetrados por Israel, uma suposta democracia moderna.
Enquanto judeu, é confrangedor testemunhar os crimes perpetrados por Israel, uma suposta democracia moderna.
Nos últimos anos, poucas vezes me pronunciei sobre este assunto. Porém, enquanto judeu, e enquanto cidadão da União Europeia, acredito que a gravidade do momento me impele a fazê-lo.
A 13 de outubro, na passada sexta-feira, as forças militares de Israel comunicaram a 1,1 milhões de residentes da zona norte da Faixa de Gaza que deveriam abandonar as suas casas num prazo de 24 horas, sob pena de verem as suas vidas ceifadas pela intervenção militar israelita. No mesmo dia, as Presidentes da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu deslocaram-se a Israel, numa missão de solidariedade para com o país e o seu povo, no seguimento dos ataques devastadores da semana anterior. A visita incluiu uma deslocação ao kibutz de Kfar Aza, palco de um dos massacres cometidos pelo Hamas, e uma série de tweets com manifestações de apoio ao país enlutado.
Enquanto figuras máximas de duas das mais importantes instituições da União Europeia, era expectável que von der Leyen e Metsola, bem como os líderes dos 27 Estados Membros, transmitissem a sua solidariedade a Israel, e que simultaneamente condenassem a chacina de 7 de outubro. O que não se esperava, não obstante, era o silêncio ensurdecedor diante da desproporcionada e ilegal retaliação por parte de Israel, por via da punição coletiva e transferência forçada, em flagrante violação de normas de Direito Internacional, que se insere na senda de várias décadas de opressão ao povo palestiniano. No mínimo dos mínimos, perante os acontecimentos volvidos na passada semana, esperava-se das Presidentes da Comissão e Parlamento apelos urgentes a um cessar-fogo imediato e à abertura de corredores de segurança para a entrada de ajuda humanitária, e esforços diplomáticos no sentido de promover uma desescalada do conflito.
O que se verificou foi uma abordagem abertamente facciosa e a manifestação de um apoio sem reservas ao regime criminoso de Netanyahu, tristemente ilustrada por uma fotografia partilhada no X (antigo Twitter) de Roberta Metsola. Na publicação, Metsola surge de mãos dadas com von der Leyen e, ao centro, o Presidente Israelita Isaac Herzog. A descrição da fotografia, “together”, deixa um sabor amargo na boca e uma questão inconveniente no ar: será então a UE patrocinadora da resposta implacável do estado judaico?
Infelizmente, a já conhecida ambiguidade da União, especialmente no que toca a momentos de crise, tem vindo a acentuar-se e acaba a esfregar sal na ferida. Num exemplo gritante dos problemas de comunicação das instituições, o Comissário Olivér Várhelyi, responsável pelo alargamento e vizinhança, anunciou a 9 de outubro a suspensão de todos os pagamentos de ajudas à Palestina. Valeu a rápida reação de vários países, incluindo de Portugal, que se opuseram à decisão unilateral da Comissão sem consulta prévia dos Estados Membros. Horas depois, o Comissário Janez Lenarčič, responsável pela pasta de ajuda humanitária e gestão de crises, veio esclarecer que a ajuda humanitária da UE à Palestina continuará pelo tempo que for necessário.
Estes avanços e recuos, e a manifesta hesitação em exigir de Jerusalém que opere estritamente no quadro das leis da guerra são por demais inquietantes, especialmente no contexto das Eleições Europeias que se avizinham. Importa lembrar que, em 2019, a Comissão von der Leyen delineou seis prioridades essenciais para o seu mandato, entre as quais uma Europa mais forte no mundo, e a promoção do modo de vida europeu. Quando em 2024 se deslocarem às urnas, verão os europeus nestas posições um reflexo das promessas feitas cinco anos antes? Ou será este mais um tiro no pé do executivo da UE, numa altura em que abundam as tensões na vizinhança da União?
Enquanto europeus, conhecemos bem os acontecimentos trágicos que proliferaram na primeira metade do século XX. São-nos relatados desde tenra idade, e constituem parte fundamental da nossa identidade cultural e memória coletiva. Enquanto judeu, é confrangedor testemunhar os crimes perpetrados por Israel, uma suposta democracia moderna. A opressão sobre o povo palestiniano, e a progressiva ocupação do seu território, ao arrepio da resolução aprovada pelas Nações Unidas em 1947, traduzem-se não só numa lenta empreitada para apagar um povo que há gerações vê naquela região a sua casa, como numa traição a todos os judeus que viram os seus próprios direitos negados e o seu povo dizimado. Como tal, a conivência e o apoio que aporta a UE ao que aparenta não ser nada senão uma nova tentativa de limpeza étnica são revoltantes e inaceitáveis.
Na alvorada do pós-Segunda Guerra Mundial, foi proclamado que nunca mais se permitiria tamanho horror e tamanha afronta à mais elementar dignidade humana. É nosso dever agora assegurar que “nunca mais” será, efetivamente, “nunca mais”, tanto lá como cá, em todo o lado, sempre e para sempre. É dever dos nossos líderes honrar os compromissos feitos ao longo de quase 80 anos para que se erradiquem a fome, a pobreza, e a guerra. É urgente que façam mais. É urgente que façam melhor.
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