Geração E

Vivemos as imagens e não a realidade?

Vivemos as imagens e não a realidade?

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Esta contaminação do mundo pela imagem representativa não acontece só com selfies, mas com tudo o que se passa. Ao ir a um concerto, corremos o risco de vermos mais pessoas a verem o concerto através do seu telemóvel do que a usufruir da experiência por completo. Tornam-se espectadores da sua própria vida

Sabem quando não queremos incomodar alguém que está a tirar uma foto e esperamos um pouco para não passarmos à frente do telemóvel? Nos últimos tempos, passei a ter mais cuidado para não passar atrás das pessoas, porque, na maior parte das vezes, estavam a tirar selfies.

Quando tiramos selfies nas apps do Instagram e do TikTok, a câmara aparece invertida, como um espelho. Grande parte das pessoas identifica-se mais com a sua própria imagem refletida do que com a orientação da câmara que equivale a como as outras pessoas as vêem.

Estes dois dados corroboram a perspetiva de que vivemos com uma auto-consciência exacerbada da nossa aparência, ao ponto de, por vezes, podermos ter disforia corporal, ao comparar imensas versões da nossa cara. Esquecemo-nos dos diferentes tipos de câmara, do espelhamento da nossa representação e de que somos a única pessoa no mundo que não tem acesso a como os outros realmente nos vêem. No artigo “We were never supposed to see our own faces this much”, de Lola Cristina Alao, temos uma reflexão sobre esta questão do poder (não positivo) da presença assoberbante da perspetiva de selfie nas nossas vidas, especialmente após uma pandemia que nos prendeu ao digital.

Esta contaminação do mundo pela imagem representativa não acontece só com selfies, mas com tudo o que se passa. Ao ir a um concerto, corremos o risco de vermos mais pessoas a ver o concerto através do seu telemóvel do que a usufruir da experiência por completo. Tornam-se espectadores da sua própria vida. A ânsia imensa de mostrar que se viveu, de ter fotos e vídeos da experiência, tem um custo demasiado alto: perder o momento. E porquê esta necessidade de se mostrar que se viveu? A necessidade de valorização online, por likes, visualizações, partilhas. Aqui entra outro problema: quando correlacionamos a nossa auto-valorização com a atenção que temos online. Como reagimos, depois, quando recebemos comentários de ódio? Que nos criticam, muitas vezes, descarregando mero escárnio descabido?

O que acontece na internet, não fica só na internet

Qualquer comentário mau pode ter um peso enorme em qualquer pessoa. No entanto, considero que há dois grandes grupos de pessoas a quem este fenómeno atinge mais, por duas razões:

Adolescentes: por estarem numa fase crítica de auto-valorização;

Figuras públicas ou pessoas expostas a um grande coletivo de espectadores: por estarem numa situação com maior propensão a grandes quantidades de insultos escritos de forma pública.

Quando eu andava no ciclo, tinha uma paixoneta pelo Pedro do 9º. F. Já havia Facebook e eu era do 9º. C. Como é que eu achei que iria ser giro dar-lhe a entender que tinha um crush nele? Comentando todas as suas fotos de perfil de Facebook com piadas. No dia seguinte, toda a gente do 9º. ano estava a gozar comigo. Mas isto não é nada, comparando com o que se passa hoje em dia. A imensidão de imagens com filtros, pessoas com intervenções estéticas, por todo o lado nas redes sociais, não ajuda em nada à autoestima das pessoas adolescentes. Ora, se o bullying ultrapassou os limites da vida real, também a auto-valorização. Não nos esqueçamos que estes adolescentes passaram uma fase crucial do seu desenvolvimento em pandemia, só com acesso ao digital para comunicar com os seus pares. Viveram de imagens. Vivem de imagens.

É também através de imagens que conhecemos as chamadas “figuras públicas”, largamente conhecidas pelo público, conforme a imagem que passam, sem que haja uma mútua relação de conhecimento. Por serem amplamente reconhecidas (“reconhecidas” seria uma palavra mais correta do que “conhecidas”), são mais facilmente vítimas de escárnio por parte deste mesmo público. Reparemos como eu poderia ter escrito “são mais objeto de escárnio”. Porque, para quem apenas conhece alguém pelas imagens que são mostradas desta pessoa, não tendo acesso à realidade, estas figuras públicas são como “objetos digitais” criados em representação das pessoas reais que elas são. Muitas vezes se ouve que comentários de ódio constantes e críticas a tudo o que se faça são “o preço a pagar” por se ter um lugar de destaque na esfera pública. A meu ver, este tipo de expressão cria uma atmosfera de desresponsabilização em relação ao discurso de ódio: “não valorizes, olha, é o preço a pagar”. Comentários com insultos gratuitos são maus e reprováveis em relação a qualquer pessoa, seja ela uma figura pública ou não. Uma figura pública não é propriedade pública.

A título de exemplo, imaginem o que é descobrirem falsificações de citações vossas, que nunca disseram, como me aconteceu: supostas citações que diziam como eu tinha “cocktails de sémen africano na minha vagina”, ou que eu “fazia relações sexuais com animais de estimação e estava no meu direito de as fazer”. Imaginem o que é ver isto espalhado pelas redes sociais. Ver esta última publicação a ser partilhada pelo IRA. Receber dms de uma deputada do PAN a pedir esclarecimentos. A sério que vivemos tanto de imagens que criamos na nossa cabeça, que não nos apercebemos do que pode ou não ser real? A este ponto? Acreditamos em tudo o que vemos sem pôr em causa as fontes?

Já que não podemos evitar de algum modo ser espectadores, que sejamos, à moda de Rancière, espectadores emancipados: desmantelemos a fronteira entre os que agem e os que vêem. Sejamos críticos e tenhamos noção de que a imagem vai só até certo ponto. Quem vivencia mais imagens do que a própria vida, não vive verdadeiramente, só assiste.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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