Geração E

Recusar a partilha de pratos: o rei vai menu

Há uma década, surgiram inúmeros restaurantes "descomplexados", com as tábuas de enchidos e as ardósias com petiscos, que impunham o conceito de partilha entre os comensais. Agora, a restauração é dogmaticamente contra a divisão

Não há almoços grátis. E não se divide almoço gratuitamente. Comer é partilhar. Só que a partilha custa 3 euros. Foi divulgado, esta semana, o Guia de Regras e Boas Práticas na Restauração e Bebidas, um trabalho conjunto do governo e do setor. Apesar de assinalar que não é a melhor prática, o documento refere que os restaurantes estão autorizados a recusar a partilha de pratos. Sendo um manual de boas práticas, é esquisito que incentive práticas que considera não serem as melhores. É um manual de práticas, vá.

Há uma década, surgiram inúmeros restaurantes "descomplexados", com as tábuas de enchidos e as ardósias com petiscos, que impunham o conceito de partilha entre os comensais. Agora, a restauração é dogmaticamente contra a divisão e apela à monogastronomia. Nada de promiscuidades, cada um come o seu.

Os restaurantes alegam que não é viável que duas pessoas que só pedem um prato ocupem uma mesa. É possível que tenham razão. Por outro lado, isto agrava o estigma em relação às pessoas que almoçam sozinhas. Já tinham de lidar com a sua patética solidão, agora terão de se sentir culpadas por lesarem a saúde financeira da tasca que frequentam.

Dir-me-ão, mas aí o problema não se põe, porque quem almoça sozinho não suja o dobro da loiça. É verdade. Quando duas pessoas dividem uma refeição, a que tem menos fome deve, das duas uma, trazer o seu próprio prato de casa ou oferecer-se para fazer meia hora na copa. Mais honesto seria comerem ambos da travessa, para que o resto dos clientes saibam que há pelintras na sala.

Consigo também empatizar com a queixa de que dividir itens do menu implica utilizar um número mais elevado de talheres. A questão é que, se vamos penalizar quem partilha refeições, devemos punir de igual forma quem não tem coordenação motora para evitar que os talheres vão parar ao chão. Há pessoas que, no decorrer de uma refeição, deixam cair três facas. O setor da restauração irá à falência se continuar a ser clemente com os desastrados.

Na verdade, esta não é uma cruzada contra os clientes, mas contra os clientes que têm pouca fome. Quem não tem apetite deve evitar comer fora. Os chefes de sala dos restaurantes têm de começar a fazer um questionário à entrada, para filtrar quem parece um pisco a comer, identificando intenções de frugalidade. "O senhor está com um ratito, larica, fome ou vontade de deglutir um antílope?"; "porventura ingeriu um batido proteico nas últimas duas horas?"; "de zero a 10, quanto é que se identifica com a frase 'eu raramente janto, fico bem só com uma sopinha'?".

Noutra perspectiva, esta resistência quanto à divisão de pratos pode solucionar um grave problema social. Nos casais portugueses, há consistentemente um membro que não sabe escolher a comida. As pessoas que têm um apurado juízo gastronómico juntam-se comummente com gente que decide pedir risotto de cogumelos em steakhouses.

Ao dificultar a partilha de pratos - que, nestes casos, habitualmente só é efetivada no momento em que o elemento imponderado se apercebe que optou por um prato inferior ao do cônjuge - os restaurantes estão a contribuir para um Mundo melhor. Um Mundo em que se escolhe melhor os parceiros românticos. E melhor os pratos.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate