Geração E

“Fazer-se homem”: o que é a construção social da virilidade e porque é que temos de acabar com ela

“Fazer-se homem”: o que é a construção social da virilidade e porque é que temos de acabar com ela

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

A virilidade deve ser destronada e dar lugar à empatia, liberdade de se ser quem é, sem preconceito, para o bem da saúde mental dos homens e da igualdade de tratamento da sociedade.

A noção de virilidade é uma lista de atributos indispensáveis para se “ser homem”, que resulta em homens recalcados, frustrados, a sofrer em silêncio, ou de egos empolados. No entanto, esta lista pode ser igualmente vista como uma rede de segurança: “se eu cumprir todos estes parâmetros, vou estar seguro, porque vou ser visto como um homem viril.” Entre a limitação ou a segurança, nasce uma prisão: a virilidade.

A virilidade é algo que é para ser observado de fora, que tem validade na sua aparência: o homem que parece viril. Um realce e orgulho desmesurado em ser macho, temperado com heterossexualidade do homem que penetra mas não é penetrado, protetor da família, dominador da mulher. Não tem medo de nenhum animal, é o herói da história, corajoso da guerra, o predador, o destemido, tal filme americano em que as personagens femininas, sempre secundárias e que, com sorte, nem um diálogo têm entre elas. Homem que é olhado em plano contrapicado, com privilégio económico que lhe permita providenciar para a família, em que só há duas opções para a esposa: ou ganha menos que ele, ou é dona de casa. O homem viril sofre para dentro, esconde sentimentos, vontades, medos, pela simples aparência de parecer viril.

Rituais de Passagem

O modelo romano da virilidade assenta na seguinte descrição: qualidade “sexuais, as do marido ‘ativo’, possante, procriador, mas também ponderado, vigoroso, contido, corajoso e comedido.” (História da Virilidade I, pág. 13.)

Nas sociedades gregas havia ritos de iniciação da integração dos jovens no grupo dos homens, para que passassem de uma “virilidade potencial para uma virilidade assumida.” (pág. 42). Pode parecer irónico, mas práticas homoeróticas faziam parte da construção da virilidade grega. No entanto, estas práticas seguiam regras específicas e bem delimitadas. Por exemplo, nas iniciações cretenses, o jovem tinha como dever relatar as relações homoeróticas que teve com o seu amante, que deveria ser escolhido conforme a sua posição na hierarquia das classe social. Esta passagem homoerótica é tida como uma inversão de papéis provisória para que, depois, possa assegurar o seu papel como dominador, ao invés de dominado, de penetrante, ao invés de penetrado. (pág.44) Assim, era como se “tirasse a teima” e assumisse o seu verdadeiro papel como homem.

Penetrar, mas não ser penetrado

Em Roma, a virilidade caracterizava-se assim de tudo pela característica de ser o indivíduo ativo e não passivo sexualmente, independentemente de quem se penetrava e como. “Em contrapartida, ser penetrado sexualmente só pode ser próprio de um efeminado, de um homem que renunciou à sua virilidade, pelo menos provisoriamente.”

Ora, por muito que este registo seja antigo, hoje em dia continua a haver a noção preconceituosa que um gay ativo é ‘menos gay’ por ser o que penetra. Que um homem a sério, macho, é heterossexual e dominante. Ainda, há uma obsessão descomunal à volta do seu pénis por parte dos homens, especialmente quando se fala de tamanho e capacidade de ereção.

Os homens continuam a ter imenso pudor em falar de disfunção erétil. Tradicionalmente, a sua virilidade está correlacionada com a sua capacidade de ter relações sexuais penetrativas. Segundo a tradição romana, para um homem ser viril, não pode ter a fragilidade de um adolescente, nem a debilidade de um velho (pág. 84). Ora, vemos aqui dois entraves: a potência sexual e a idade. O corpo viril, atlético, capaz, a ser posto à prova pelo tempo. Falamos da tradição romana, mas tudo isto ainda acontece.

Os corpos oleados e musculados dos homens da Antiguidade são equivalentes aos homens a grunhir quando pegam em pesos nos ginásios. Os gregos, viam, inclusive uma “relação entre beleza física e qualidades morais, entre educação e beleza.” Ora, homem bom era o forte e o protetor, educado a proteger a fragilidade da sua mulher.

Esta construção de virilidade através da força, é tradicionalmente equivalente, no polo contrário, à construção da feminilidade através da delicadeza. Não é novidade nenhuma que a noção de superioridade masculina é massivamente descrita ao denegrir o feminino: forte vs. frágil; protetor vs. em apuros; trabalho fora de casa vs. dona de casa.

Se por um lado o pensamento da Antiguidade greco-romana nos parece, e está, tão longe em alguns aspetos, noutros, continua atual. Uma coisa é certa: a virilidade sempre foi uma prisão, um dever de aparência, um custo muito alto a pagar para se ser visto como homem capaz.

É necessário construir noções novas de masculinidade livre, em que uma pessoa que é homem — como um mulher cis sabe que é mulher, um homem trans sabe que é homem, uma pessoa não-binária sabe que é não-binária —, e vive essa realidade como bem lhe apetece, sem ter de ‘provar que ‘é homem’, sem ter de seguir uma lista de características e exercícios que resultem num diploma que comprove que é homem.

Notas conclusivas

Um homem não é menos homem por não ser hetero.

Um homem não é menos homem por ser infértil.

Um homem não é menos homem por ganhar menos que a namorada ou esposa.

Um homem não é mais homem por ser dominante no sexo.

Um homem não é mais homem por ser alto e musculado.

A virilidade deve ser destronada e dar lugar à empatia, liberdade de se ser quem é, sem preconceito, para o bem da saúde mental dos homens e da igualdade de tratamento da sociedade.

Muito mais se poderia dizer sobre tudo isto, mas fica aqui uma introdução. Termino com uma citação, a meu ver ainda utópica, escrita por Corbin, Courtine e Vigarello:

“O modelo escapa, apaga-se, condenado a nostalgias irrisórias até invalidar a própria palavra virilidade. Daí este imenso percurso até ao coração da nossa história em que a tradição do viril, depois de muitas inflexões, pode hoje arrumar-se num qualquer conservatório anacrónico e fossilizado de decrépitos ideais, ou inventar novas identidades e prosseguir as suas metamorfoses.”

O caminho dos homens não pode ser a virilidade, mas sim a liberdade. Criemos novas identidades saudáveis de masculino. Está na altura de mudarmos os parâmetros.

Bibliografia:

História da Virilidade I, volume dirigido por Georges Vigarello, editado pela Orfeu Negro.


Capítulo “Homem que é homem não chora nem faz exame à próstata.”, em Guia Prático Antimachismo, de Ruth Manus, editado pela Cultura.

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