Geração E

A vida sexual da mulher só começa com penetração?

A vida sexual da mulher só começa com penetração?

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Assumir que a vida sexual de uma mulher começa com a inserção de um pénis na sua vagina, é limitado e nada inclusivo para as pessoas queer. Ainda há muito pudor em falar de vida sexual e ainda se pressupõe uma definição heteronormativo e falocêntrica do que é ter relações sexuais. Realço, ainda, o facto da responsabilidade contraceptiva continuar a recair massivamente nas mulheres, não havendo uma responsabilidade equiparada entre géneros

Este artigo de opinião é uma reflexão sobre a abordagem da vida sexual das pacientes mulheres (cis) em consulta médica. Partiu da minha experiência pessoal, ao me perguntarem numa consulta de Ginecologia:

— Quando iniciou a sua vida sexual? — pergunta-me a médica.

— O que depreende por “início de vida sexual”? — continuei eu.

— A primeira vez que fez sexo penetrativo.

Este tipo de abordagem assume que a vida sexual de uma mulher começa com a inserção de um pénis na sua vagina, o que é limitado e nada inclusivo para as pessoas queer. Claro que nem todas as consultas de Planeamento Familiar e Ginecologia são assim, mas muitas são. Ainda há muito pudor em falar de vida sexual e ainda se pressupõe uma definição heteronormativa e falocêntrica do que é ter relações sexuais. Desta forma, nesta crónica, proponho uma nova forma de ver as coisas, com o apoio do livro “O Atlas da V”, da Dra. Lisa Vicente e testemunhos de seguidoras no mesmo contexto de consulta.

“Então e quantos parceiros já teve?”

Tive dezenas de testemunhos de pessoas a quem lhes perguntaram em consulta de Planeamento Familiar e Ginecologia: “Quantos parceiros já teve?”

“Perguntou-me quantos parceiros tive. Respondi 2. Reação: ‘ah, coitada.’”

Entendo que mais parceiros possa dar a entender que há uma maior probabilidade de contágio de ISTs, mas a verdade é que entre, por exemplo, ter tido 3 parceiros e nunca usar métodos de barreira contra ISTs, ou ter 10, mas usar sempre métodos de barreira, não há como saber em qual há mais perigo de contágio sem mais informações. Assim, a pergunta “quantos parceiros teve?”, não é de todo relevante. Porquê? Porque mesmo tendo tido 3 parceiros, ou tendo um parceiro fixo de cada vez, sem ter maior contexto e acesso a exames, nada garante que a pessoa com quem se está não é portadora ou não se encontra com outras pessoas. Importa, então, perceber se a paciente usa métodos de barreira de forma eficaz, se há sintomas fora do normal (para as ISTs com sintomas), se tanto a paciente como o/a parceiro/a têm os exames das ISTs em dia. Assim, é relevante saber quando fez os últimos exames, quais foram os resultados, e se teve sexo sem proteção entretanto. Ainda, importa informar como as ISTs podem ser transmitidas e quais são os sintomas delas (quando os há) e com que frequência devem ser feitos exames.

“MGF: Quantos parceiros já teve?’ Eu: muitos. MGF: Mais ou menos? Mais de dois? (…)”

Por exemplo, mesmo sem penetração com pénis, se duas pessoas partilharem um dildo/vibrador, devem colocar preservativo no brinquedo antes da inserção do brinquedo sexual e trocar o preservativo entre o uso delas. Como opção, podem lavar com água e sabão ou gel de limpeza apropriado antes da troca de inserção. Como tal quebra um pouco o clima, sugere-se o preservativo. (No caso de vibradores externos, na partilha, o preservativo não é solução, claro.)

Ainda, sexo oral também é passível de transmissão de ISTs. Por consequência, se nas consultas médicas for tido por defeito que a vida sexual de uma mulher só acontece quando há penetração, entramos num campo de perigo, já que a paciente não é acompanhada como deveria ser.

“Tenho 30 anos e por ter vaginismo, só o ultrapassei aos 26, ou seja, sexo com penetração só nessa altura. Mas comecei a namorar aos 15 anos e a iniciar a intimidade nessa idade. Aos 17 comecei a tomar a pílula, dada na consulta de planeamento familiar. A médica escreveu numa página calendário do boletim ‘SEM VIDA SEXUAL ACTIVA’".

Desta forma, não interessa que tipo de sexo a paciente faz, ou com quem, interessa, sim, se está a ter sexo protegido. Assim, importa que se informe a paciente sem pudor e com literacia corporal, sem passar por vocabulário que demonize o sexo: não é suposto ficar-se com ansiedade de contrair todas as ISTs do mundo, mas antes ficar tranquila com a proteção que se tem e desfrutar do momento.

“Quando a médica pergunta: ‘quantos parceiros teve?’ E eu: ‘parceiros só, ou parceiras também contam?’”

Além disso, fazer a pergunta dos parceiros à mulher, pressupõe que a mulher é heterossexual por defeito. Ora, para quem é bissexual, homossexual ou queer, começar uma consulta assim é logo um murro no estômago protagonizado pelo preconceito. Claro que a intenção não é magoar a paciente, longe de mim pensar tal coisa, mas a pergunta acarreta a limitação da visão do que é sexo. Uma consulta médica não poder ser, nunca, um lugar de julgamento ao invés de um lugar de empatia, cuidado e informação.

A ideia de que a vida sexual de uma mulher começa quando o seu hímen (que até pode nem ter ou ser flexível) é rompido, não faz sentido nenhum. No entanto, esta noção continua a contaminar, muitas vezes, a forma como uma consulta médica de Planeamento Familiar ou Ginecologia é dirigida. (Ler sobre este assunto aqui.) A inserção do pénis não pode ser o selo de aprovação para o início da vida sexual. Então, como poderemos pensar noutra alternativa?

Repensar a definição de início de vida sexual

Ora, o início da vida sexual, a meu ver, é quando temos contacto íntimo sexual com alguém. Mas como definir isto em termos médicos? É aqui que entra a definição de “resposta sexual”. Pelas palavras da Dra. Lisa Vicente, médica, especialista graduada em Ginecologia-Obstetrícia: “o conceito de resposta sexual designa o conjunto de eventos/fenómenos que se sucedem durante a função sexual. É difícil, e por vezes artificial, separar os vários momentos da resposta sexual porque interligam-se e sucedem-se sem pontos de paragem — sem pontos finais ou parágrafos…” (pág. 80).

Um dos modelos apresentados de resposta sexual, e devidamente comentados pela autora, é o de Rosemary Basson. (pág. 83)

Repare-se como em lado nenhum é mencionada a penetração. Então, se para ter resposta sexual não é preciso ter penetração, porque se continua a considerar que a vida sexual só é ativa a partir do momento em que há penetração?

Se o que importa é saber se a paciente tem risco de ter ISTs, se usa métodos contraceptivos, se está devidamente informada, se tem exames em dia, porquê perguntar quantos parceiros teve?

Concluindo, proponho que pensemos em novas formas de abordar o tema da vida sexual, incluindo em consulta médica de Planeamento Familiar e Ginecologia, para que todas as pessoas se sintam incluídas, dispostas a tirar todas as dúvidas sem pudor. Não sou médica, mas sou paciente, que usufrui dos cuidados médicos. Assim, a pergunta que deixo a todos os profissionais de saúde é: como podemos fazer da abordagem da vida sexual em consulta médica mais inclusiva e menos preconceituosa?

A inclusão deve ser feita para todas as pessoas, independentemente do género e orientação sexual. Esta crónica focou-se nas mulheres cis para dar a devida atenção ao tema. Resta-me realçar o facto da responsabilidade contraceptiva e de rastreio das ISTs continuar a recair massivamente nas mulheres, não havendo uma responsabilidade equiparada entre géneros.

Bibliografia:

“O Atlas da V — um guia claro, directo e ilustrado do mundo feminino e não só”, de Lisa Vicente, editado pela Arena, 2019.



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