Geração E

O perigo da cultura de cancelamento

O perigo da cultura de cancelamento

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

A cultura de cancelamento retira às pessoas a possibilidade de errarem e se arrependerem, de pedirem as devidas desculpas e mudarem o seu comportamento. Claro que há pessoas que merecem ser canceladas, porque as suas ações são, de forma consciente, um ataque aos direitos humanos, mas na maior parte das vezes não é disso que se trata

Quando o cancelamento gratuito vem antes da procura de diálogo e noção do contexto, está-se a pôr um travão à nossa evolução como sociedade.

Ora, a cultura de cancelamento funciona como um excomungar da arena do poder social, tanto na vida corriqueira como no digital, estando muito presente nos dias de hoje. O medo e a possibilidade de cancelamento não afeta só figuras públicas como também o público em geral.

Por muito que haja pessoas que realmente merecem ser canceladas, dado os crimes contra a Humanidade que cometeram – como Trump, Bolsonaro, Andrew Tate –, muitas vezes há situações que impulsionam cancelamentos que fazem mais mal do que bem.

É possível separar a obra do artista?

Há casos como Chris Brown, que foi agressor contra Rihanna enquanto namoravam; como Michael Jackson, que foi acusado por várias pessoas de pedofilia (que foram entrevistadas para um documentário); como Woody Allen, acusado de violações sexuais, que nos fazem pensar: é possível separar a obra do artista?

Posso gostar dos filmes de Woody Allen?

Posso gostar das músicas de Michael Jackson?

Honestamente, cabe a cada um. Algo é certo: não podemos negar a marca que, por exemplo, Michael Jackson fez na indústria da música. Cabe a cada um de nós decidir se continua a ouvir/ver obras de pessoas acusadas de crimes graves como estes, mesmo que goste das suas obras. Num sketch de humor, Pete Davidson sugeriu que por cada música de M. Jackson que se ouvisse, se fizesse uma doação a uma associação que apoie vítimas de violência sexual.

A título pessoal, não ouço músicas deste músico, nem de G-Easy — constantemente misógino nas suas letras e acusado de ser violento pela sua ex Namorada Halsey —, não vejo filmes de Woody Allen, nem de outros realizadores acusados de assédio sexual. Não lhes quero dar visibilidade. Há outras e outros artistas a quem se pode dar voz, dinheiro de bilheteiras, streamings no Spotify. A título de exemplo, Timothée Chamalet, ator no filme de Allen “A Rainy Day in New York”, doou o seu salário relativo ao filme a associações.

A importância do contexto

Estes casos sérios à parte, há muitas frases ditas, ou escritas, e ações tomadas, que retiradas fora do contexto podem ser adaptadas a qualquer coisa, podendo potenciar mudanças totais de interpretação.

A verdade é que, nos tempos que correm, as pessoas são muito rápidas a julgar, sem ter em conta o contexto, especialmente se já tiverem uma ‘irritaçãozinha’ de estimação por alguém ou uma raiva na sua vida por direcionar.

É muito difícil ser-se imparcial quando já se tem a tal ‘irritaçãozinha’ de estimação por alguém. Estas “irritaçõezinhas” não precisam de ter nenhuma razão em específico, mas quando se ouve um cochinho que pode ser usado como premissa para o argumento “não gosto dele/a”, a pessoa irritada pode potenciar o cancelamento de alguém só porque sim. Esquece-se que do outro lado há uma pessoa inteira, real, com uma vida que pode ser gravemente impactada com um cancelamento só porque sim, só porque “não gosto dela”, sem realmente conhecer a pessoa ou o contexto de ação ou da frase dita.

Ainda, há muitas ações e coisas ditas que são ofensivas que são ditas por falta de informação, daí ser importante distinguir alguém que diz um comentário homofóbico de uma pessoa que seja homofóbica, por exemplo. Já falava a modelo e ativista Ivvi Romão, numa conversa pública recente, sobre dar o benefício da dúvida a alguém: tirar tempo para perceber e dialogar com a pessoa ao invés de automaticamente a insultar ou cancelar. (Não esquecer que para desconstruir o possível preconceito de alguém é preciso ter espaço mental para esse exercício de trabalho emocional. Não se precisa de estar na milícia continuamente, pode-se escolher as batalhas conforme a energia que se tem e a disponibilidade da outra pessoa em ouvir e discutir civilizadamente).

Quando o benefício da dúvida nos é retirado a priori

A maior parte das pessoas é passível a mudança, se estiver aberta a ouvir e a dar atenção a informação diferente do seu contexto habitual. Se cancelarmos logo à partida a pessoa, ela vai ser excluída do diálogo, posta de parte. Isso não ajuda em nada o estado social das coisas. Só alguém que é ativa e conscientemente nocivo/a para a igualdade de tratamento de pessoas merece ser cancelado/a. Alguém que disse a coisa errada na hora errada, ou que foi ofensivo sem ter noção, não merece apenas por isso ser cancelada/o.

A cultura de cancelamento retira às pessoas, logo à partida, a possibilidade de errarem e de se arrependerem, de pedirem as devidas desculpas e mudarem o seu comportamento. Claro que há pessoas que merecem ser canceladas, porque as suas ações são, de forma consciente, um ataque aos direitos humanos, mas na maior parte das vezes não é disso que se trata.

Quando o cancelamento gratuito vem antes da procura de diálogo e noção do contexto, está-se a pôr um travão à nossa evolução como sociedade.

Ressalvo que isto não quer em nada dizer que se deva ignorar acusações, pelo contrário, deve-se dar a devida atenção e importância. Aliás, é muito diferente falar das inúmeras acusações de violação de crianças contra Michael Jackson ou de uma frase que pareceu um bocado homofóbica vista de determinado ponto de vista dita pela Sandra da contabilidade da empresa.

Devemos estar alerta, chamar à atenção e potenciar o diálogo ao invés do insulto gratuito. Antes de cancelar, informe-se. Procure perceber. Ou, então, ignore e continue com a sua vida, só não alimente ódio só porque sim. Já há demasiados problemas no mundo. Além disso, ninguém precisa daquele medo-rasteiro-que-mói de poder dizer a coisa errada na hora errada, ou poder dizer algo que pode ser eventualmente mal interpretado. Já há demasiada ansiedade no mundo.

O cancelamento coletivo tem muito poder. Usemo-lo para quem realmente o merece.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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