O lado B do impacto das redes sociais na produção artística
Esta é a história de como uma necessidade de viver pela arte movida pela felicidade, se pode tornar numa sensação de aprisionamento de criação de conteúdo constante
Esta é a história de como uma necessidade de viver pela arte movida pela felicidade, se pode tornar numa sensação de aprisionamento de criação de conteúdo constante.
Quando percebi que o que me fazia feliz era a ilustração, decidi fazer tudo ao meu alcance para poder fazer dela o meu emprego principal. Antes de tudo, escolhi um nome que facilitasse as pesquisas online: “Clara Não” ao invés de “Clara Silva”. Criei uma página no Facebook — estávamos em 2014 — e comecei a partilhar os meus desenhos por lá e no Instagram também. Lembremo-nos que esta era a altura pós Tumblr, inícios de popularização do Instagram, inundado de fotos de comida. Esta importância à presença online foi desde logo vista como uma necessidade, porque permitia que mais pessoas conhecessem o meu trabalho sem o impedimento da presença física: só podem gostar (ou não) do trabalho se o conhecerem.
Ao mesmo tempo que isto acontecia, fiz o meu primeiro fanzine com ilustrações e fui presencialmente a galerias perguntar se queriam vendê-lo. Quando já estava estabelecida no Porto, fui de portfólio debaixo no braço três dias para Lisboa, com um percurso delineado de galerias a visitar. Estávamos em 2018. Desses três dias, surgiram 3 exposições em galerias diferentes: a primeira no final desse mesmo ano, no Artroom, e duas em 2019, na Malapata e na Apaixonarte. O calor que recebi das pessoas foi imensurável. Havia tanta gente, tanto amor (e tão pouco ódio).
No último dia da exposição no Artroom, recebi uma mensagem do meu, agora, editor da Porto Editora, a dizer que queriam reunir comigo, para falarmos da possibilidade de lançar um livro. Quando lançámos, eu tinha 14 mil seguidores e uma fila de quase 3 horas de espera para autógrafos na Feira do Livro de Lisboa.
Em 2020, com a pandemia, todo o meu trabalho ficou cancelado ou adiado, por ser quase tudo presencial. Foi aí que dei a reviravolta para o digital. O digital salvou a minha sanidade mental durante esse tempo: tudo o que eu sentia, todas as emoções, depositava-as no meu pincel e tinta-da-china, com humor, amor, honestidade e força.
As redes sociais são incríveis, sim, para darmos a conhecer o nosso trabalho. Cada um de nós pode, sim, escolher quem segue, mas hoje em dia o algoritmo e as trends (tendências) podem transformar uma plataforma de partilha em comunidade numa prisão digital. Este é o lado B do impacto das redes sociais, de quem as usa para o seu trabalho, aquele lado que ninguém vê, ninguém ouve, pouca gente fala, mas toda a gente, mais tarde ou mais cedo, sente.
Parece que a cada minuto que passa, o algoritmo das plataformas digitais dá primazia a novas formas de gravar vídeos, com esta ou aquela música, depois com “aquele movimento” de câmara, depois com “esta transição”: as chamadas trends ou tendências. Quando falamos de tendências, falamos de modas digitais — danças, músicas, temas, áudios — que se proliferam por todo o lado, que se tornam virais, a que o algoritmo acaba por dar mais atenção. Estas trends têm uma origem, alguém as começou, claro, mas acabam por fazer com que toda a gente ouça o mesmo áudio, veja a mesma dança, ouça a mesma música, vezes sem fim no seu feed, ou a partir do momento em que abre um reel e fica preso num scroll infinito, ou ao abrir o TikTok na secção “For You”. Parece que o algoritmo passa a premiar mais a repetição do que a inovação.
Quando falamos de arte, o algoritmo funciona da mesma forma. Para além de fazer a pintura, ou o desenho, ou a música, temos de criar conteúdo regular se queremos “crescer”: “temos de” filmar o making off, editar, partilhar, criar legendas apelativas, pôr a música do momento, partilhar o dia-a-dia. O pior disto tudo, é que muitas vezes não estamos a trabalhar para as pessoas diretamente, a quem muitas vezes o conteúdo nem lhes chega mesmo que nos sigam, mas para o algoritmo da plataforma. Depois disso, ainda temos de ver e analisar quantidade de likes, comentários, partilhas. Uma pessoa artista já não tem só de lidar com a exposição do seu trabalho, de forma literal e física, mas com estatísticas e presença digitais.
Para quem procura criar conteúdo digital genuíno para uma comunidade, como eu, há, assim, três grandes entraves para o uso pacífico das redes sociais:
— o algoritmo a que todas as pessoas com conta estão sujeitas, mas que nenhum utilizador sabe a 100% como funciona;
— a falta de noção de pessoas que fazem comentários de ódio — muito mais diretamente à pessoa artista/criadora do que à arte/ conteúdo em si — esquecendo-se que do outro lado está uma pessoa inteira, real, por muito que seja, se for o caso, figura pública;
— a potencialidade das redes sociais em fazerem da validação de pessoas alheias o método de medição da nossa auto-valorização.
O impacto mental das redes sociais é real. O que não mostramos por lá diz muito mais sobre nós do que aquilo que mostramos. As pessoas não estão sempre felizes. Viajar em família não é sempre maravilhoso. As panquecas não são sempre saudáveis. A rotina de self-care não está sempre em dia.
Por muito que continuem a ser plataformas incríveis para darmos a conhecer o nosso trabalho e opinião, nem sempre nos fazem mais felizes ou realizadas/os. Se não tivermos cuidado, as redes sociais podem aprisionar-nos de uma forma muito peculiar: tornam-se numa cela individual da qual temos a chave na mão, mas não abrimos logo a porta, porque estamos só a ver mais um reel ou tiktok. Só mais um. Só mais um. Só mais um. Postar esta foto, aquele vídeo. Ver estatísticas. Responder a comentários. Olha, mais uma dm. A vida real não acontece na janela da cela em formato de smartphone. Acontece lá fora. E nós temos a chave.
Dito isto, usemos, sim, as redes sociais, para nos conectarmos com as pessoas, criarmos comunidade, partilharmos o nosso trabalho e as nossas paixões, para mostrarmos, sendo artistas, como fazemos o nosso trabalho. No entanto, algumas palavras a ter atenção:
Não se deixem levar pelo turbilhão de estatísticas, números, trends. Claro que convém perceber o que está a ser feito e como o público está a reagir ao que fazem mas não deixem de ter espaço para pensar no que é disruptivo criativamente: se ninguém o está a fazer, está na altura de fazer. No entanto, se se sentem cansadas/os de trabalhar para uma plataforma, parem um pouco, porque não é suposto trabalharem para as redes sociais, mas para pessoas. É muito fácil, neste ambiente possível de se tornar numa prisão criativa, passarmos a pensar “no que funciona” ao invés de “o que queremos fazer”. Saiam um pouco. Deixem as apps. Descubram o que vos faz felizes e voltem mais fiéis a vocês mesmas/os.
Vou só ali descansar e já venho,
Clara
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