Quando a raiva cresce em nós, apodera-se de todo o nosso corpo. E, se realmente estávamos cheias/os de raiva em certo momento, esse rasgar de coração, bem menos estético do que um Lucio Fontana, fica bem gravado na memória.
Esta raiva que nos faz ir para a rua. Esta raiva que nos faz dar um murro no móvel. Esta raiva que nos faz chorar em posição fetal. Esta raiva que já ultrapassou há muito os limites da tristeza e da ansiedade. Esta raiva que é real, que está aqui, no nosso peito, a gritar tanto, que só nós gritando também a conseguimos começar a libertar. Esta raiva que é tanta, que nos faz perder a voz, como se gritássemos para o nosso próprio âmago. O que podemos fazer com esta raiva.
Vemos tantas coisas a serem-nos prometidas para um futuro que nunca chega, para uma realidade que não corresponde à de 99% das pessoas. Soluções que nada resolvem, que não têm em conta privilégios sociais. O estado tem 700 croissants para dezenas de milhares de pessoas que não têm sequer pão.
A verdade é que a raiva pode, sim, ser extremamente poderosa, no sentido em que nos pode fazer agir. No entanto, pode também, como escreve Elif Shafak, tornar-se repetitiva, intransigente, corrosiva e até paralisante. Ora, se ficarmos cativas e cativos de um pensamento obsessivo sobre o que nos está a enraivecer, corremos o risco de ficarmos presos num loop que analisa incessantemente o que nos provocou a raiva, sem a resolver, sem conseguirmos avançar. A raiva também tem o poder de nos prender no tempo. Como sarar uma ferida, se em vez de cuidarmos dela, estamos antes a contar a história e a exemplificar a queda de como a fizemos uma e outra vez? Claro que entender o contexto de uma grande ferida-raiva é essencial, mas é impreterível encontrar mecanismos para avançarmos para lá da ferida-raiva.
Ora, usando como exemplo o problema social da habitação, as pessoas poderiam ter ficado nas esplanadas de café a mandar vir com as condições da habitação, em vez de se organizarem e irem para a rua. Pois bem, as ruas encheram-se, a raiva traduziu-se em comunidade. Agora que a raiva está demonstrada, é preciso avançar para soluções. É preciso que o governo trabalhe para encontrar soluções para as pessoas e não para os bolsos. Caramba, como é irónico que num mundo nunca antes tão interligado, a maior crise atual seja a da empatia.
Esta é a sociedade feita por quem seria capaz de ver um sem-abrigo bêbedo a rebolar pelo Chiado abaixo e, em vez de se aproximar e procurar ajudar, decidir afastar-se, ir ali ver a montra da H&M enquanto ignora aquela situação, porque não é problema seu, “foi ele que se pôs naquela situação”. Esta é a sociedade feita por quem se queixa das políticas do governo, quando nem sequer votou, com taxas de abstenção quase a chegar aos 50% em 2022. Dado isto, apoiada em Shafak, deixo as seguintes perguntas provocatórias: quando as pessoas estão tão habituadas a não serem ouvidas, poderá sequer ser tão surpreendente que elas mesmas se tenham tornado incapazes de ouvir? Será tão flagrante que deixem de acreditar que alguma vez alguém as vai ouvir?
São as manifestações grandes — como as dos professores, a do Dia da Mulher e a do direito à habitação — que me dão esperança. Talvez a raiva unificadora possa ser o princípio de uma solução: encontrar pessoas que sintam o mesmo que nós e fazermo-nos ouvir. (Deixo a nota que a intervenção política não tem de ser necessariamente partidária.) O poder de escolher os políticos e políticas é do povo. O povo é quem mais ordena. O povo tem de se unir, exigir soluções, o povo tem de votar. Pode não ser o voto no partido perfeito, mas é uma tomada de decisão pelo que se aproxima mais da realidade que procuramos. É o que mantém a democracia viva.
Nesta era de falta de empatia, de individualismo, há a comum tentação de votarmos para o que o nosso eu, como pessoa individual, precisa. Esquecemo-nos que, quando votamos, votamos para toda a gente. O meu voto não é só para mim, freelancer por opção, mulher solteira de classe média, capaz de pagar uma renda para viver sozinha e de ter um seguro de saúde. O meu voto é para as mães solteiras sem médica/o de família; para as pessoas negras vítimas de racismo no trabalho; para as pessoas LGBTQIA+ que sofrem de violência nas próprias casas; para as pessoas que usam cadeira de rodas que lidam com o preconceito do capacitismo, com prédios com escadas em todo o lado e passeios habitados por carros; para a mulher grávida dispensada da empresa; para as pessoas que morrem a caminho de uma urgência a mais de 200km de distância. Porque olhar para o nosso umbigo só é produtivo em termos de cotão.
Numa sociedade desconectada, em que receber um “bom dia” de um vizinho é algo querido e não meramente corriqueiro, seja uma pessoa disruptiva: pergunte “tudo bem?” a alguém, querendo mesmo saber a resposta; ajude uma mãe sozinha com a sua criança a transportar o carrinho de bebé pelas escadas; evite ao máximo estacionar nos passeios; vá a manifestações. Para os políticos no poder, resta-me deixar-lhes uma mensagem: é de uma ingratidão extrema e de uma crueldade imensurável que as políticas de uma cidade não garantam habitação para as pessoas que trabalham nessa mesma cidade e a fazem funcionar.
Bibliografia:
How to Stay Sane in an Age of Division, da ativista e autora Elif Shafak. Livro anteriormente mencionado, dada a sua clareza na definição de pertença e identidade a nível social.
Esta crónica foi escrita ao som de Ryuichi Sakamoto que faleceu ontem, dia 2 de abril de 2023.
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