Geração E

“Perguntaram-me quantos seguidores tinha”: o casting dos jovens atores para um futuro de incerteza

Vasco Barroso na peça "Gaspar", que esteve em exibição no Teatro Maria Matos no final de 2022
Vasco Barroso na peça "Gaspar", que esteve em exibição no Teatro Maria Matos no final de 2022
Ana Paganini

É o ter ou não ter: trabalho, dinheiro para pagar a renda ou comida para pôr no prato. As oportunidades escasseiam no palco das artes performativas. E, quando as há, os números contam. Somam-lhes a “injustiça”, a “precariedade” e a “instabilidade cada vez mais assustadora”. Como é que um jovem ator vive sem guião? O Expresso foi saber

Têm formação na arte de representar mas, quando chega a altura de assumirem o papel principal da sua própria narrativa, cai a cortina de incerteza sobre o futuro, num palco que é a vida. “Estamos sempre a pensar quando será o nosso último espetáculo”. São palavras de Vasco Barroso, um jovem ator de 28 anos que desistiu de o ser, antes de voltar a sê-lo. Hoje, só tem plano A: “Tem de resultar”. Mas para Joana Pialgata, de 26 anos, a segunda letra do alfabeto vai aparecendo de forma intermitente. “Eu não tenho plano B, mas vou tendo à medida que preciso de sobreviver, caso contrário passo fome”.

Todo o palco precisa de uma plateia, mas a expectativa daquilo que resulta dessa sinergia é, para estes jovens, difícil. Ou porque os públicos são sempre os mesmos, ou porque esse mesmo público não vê a representação como um trabalho. Na base, têm o sonho: “É importante cada pessoa que tenha o sonho de ser ator saiba explicar o porquê”, considera Patrícia Vasconcelos, diretora de casting, coordenadora da ACT - Escola de Actores e fundadora da Direção da Academia Portuguesa de Cinema.

O que se segue é a história de três jovens, com esse sonho em comum.

1.

“Anormalidades" na indústria dos sonhos

Imagine o seguinte cenário: Está a candidatar-se uma vaga de emprego e, ao preencher o formulário, vê que lhe pedem para quantificar o número de seguidores que tem nas redes sociais. Talvez partilhe a mesma a palavra que sobressalta dos pensamentos de Patrícia Vasconcelos, diretora de casting e coordenadora da ACT – Escola de Atores: “Surreal”. Ainda que o seja, não o é, e a Joana Pialgata já aconteceu. “Várias vezes”, garante, rindo entre dentes serrados. “Porque nesta indústria és um produto e precisas de vender”.

É jovem, é mulher, é atriz, e partilha esta realidade com outros tantos. Outros tantos que não João Raposo Nunes, de 29 anos. Também é jovem, também é ator, mas é homem. “Nunca me sentei à mesa com um diretor que me fizesse essa pergunta”, partilha, acrescentando: “As mulheres sofrem mais desse mal. Nesta indústria há muita diferenciação de género”. Nunca olhou para a imagem como uma questão, embora admita que isso talvez se deva ao facto de haver menos homens no setor, tornando-se mais precisos. Mais uma vez, os números contam. “Revolta-me que gire em torno disto”. O holofote incide agora sobre Vasco Barroso. “Para a indústria importam, mas são anormalidades”.

E porque é que importam? João Raposo Nunes, ainda que duvide dos critérios de seleção para este fim, responde: “Não nos podemos esquecer que se trata de empresas cujo objetivo é ter lucro”. Para Vasco, esse objetivo foge daquilo que acredita ser a arte da representação. “O que devia tornar o objeto artístico rentável é o impacto na sociedade”, reflete.

Joana Pialgata em "VANETTE", a curta-metragem de Maria Beatriz Castelo. O filme é sobre Eva e Sónia, duas órfãs na casa dos 20 anos que estão numa relação amorosa. A única coisa que lhes resta e une é uma carrinha, em que viajam pelo país num percurso atribulado.
Penultimodocesto

2.

“Não confiaria num médico sem formação". E num ator?

Apesar das “fornadas” de atores que saem das escolas de teatro - assim as categorizou Joana Pialgata -, nos créditos das telenovelas, do cinema, ou nos letreiros do teatro, os nomes são quase sempre os mesmos. “Deveria interessar mais a qualidade do produto final, e não quem está nesse produto”. É João Raposo Nunes quem volta a entrar em palco, com a contracena de Patrícia Vasconcelos: “Uma coisa é um produtor estar à procura de atores com carreira para cabeças de cartaz, acontece em qualquer parte do mundo”. Um mundo onde “nunca houve tanta saída a nível internacional”, acrescenta Joana.

As plataformas de streaming abriram novas portas para o exterior, mas para lá chegar, continua, “ter nome cá dentro ajuda”. E neste círculo de influência viciado há pouco espaço para o projetar. É João quem volta a intervir: “Há muita gente muito boa, mas como não está nessa ‘caixinha’, não tem lugar”.

Mas o que é que faz de um ator... um ator? “Eu olho para esta profissão exatamente assim: como uma profissão. É como ser médico – ninguém se torna um sem ser formado para isso. Não confiaria num médico sem formação”, continua o jovem.

Para quem se senta na plateia, a avaliação é diferente. Patrícia Vasconcelos, que cruza uma experiência enquanto diretora de casting e coordenadora de uma escola de atores, aborda a questão da formação como algo relativo: “O talento também pode ser trabalhado”. Joana Pialgata concorda: “A formação não faz de nós artistas, há belíssimos atores que nunca a tiveram”.

3.

Sabem e sonham, mas o sonho não comanda a vida

Eu, tu, ele, nós, vós, eles. Não há sujeito com que se conjugue o verbo desistir. “Só precisamos de coragem”, começa por dizer Vasco Barroso, ainda que nem sempre a tenha tido. No seu primeiro ano de carreira mudou-se para Londres, não atrás do sonho, mas a fugir dele. “Comecei a comparar-me com as pessoas que tinha à volta. Achava que, ao contrário de mim, iam triunfar. Fiquei com tanto medo de falhar que me sentia um impostor”.

Uma síndrome que parece ser um tanto transversal entre atores, e com a qual Patrícia Vasconcelos lida com frequência – é uma soft skill que adquiriu nas suas décadas de carreira. “Alguém que venha ter comigo e faz uma superperformance pode eventualmente não saber do que é capaz”. Mas a indústria exige colmatar essa insegurança e, por isso, treina os seus alunos para serem “realistas”.

Mas um outro sentido dessa realidade veio como um “choque” para Joana Pialgata, depois de concluir os estudos e entrar no mercado de trabalho. “Comecei a perceber que ia viver na precariedade e nasceu em mim um sentimento de injustiça e frustração muito grande. A instabilidade tornou-se cada vez mais assustadora e é um dos meus maiores medos”.

Vasco tem trabalho. Joana também. Mas amanhã podem não ter. “Estamos sempre a pensar quando será o nosso último espetáculo”, diz o primeiro. A segunda, que está a mais de um mês para estrear a peça em que entra, não tem nada programado para depois. Cá está: a instabilidade assustadora. Ainda assim, vai contornando a dificuldade. “Eu tento reinventar-me, e vou criando outras oportunidades dentro da área quando não estou a trabalhar num projeto enquanto atriz”. Dentro da área - a frase chave. “Não que tenha medo de ir trabalhar para um café, mas não acho que me daria tanto gozo”.

A partir do momento em que Vasco deixou o seu plano B – quando voltou de Londres esteve ainda três anos a trabalhar em recursos humanos antes de regressar aos palcos – diz só ter plano A e esse “tem que resultar”.

Também João Raposo Nunes já pensou assim. Mas não mais – embora continue ciente de que, à semelhança de Joana, nada o preenche como representar. “Se gostava de trabalhar como ator? Gostava. Se consigo fazer outras coisas e ser feliz a fazê-las? Consigo”. Está a tirar mestrado em Ciência Política por sentir falta da componente teórica na sua vida, mas também, e não o esconde, como alternativa – o que, insiste, não é sinónimo de desistir.

4.

O fator sorte e as dores nas bochechas

A missão: levar mais pessoas ao teatro. O (que parece) impossível: dar início a um novo projeto. Se não é impossível, diz Vasco Barroso, “é horrivelmente difícil”. Não que vontade não exista, João Raposo Nunes diz conhecer muitas pessoas com iniciativa, mas sem apoio: “Nem precisava de ser em dinheiro. Às vezes só é preciso algo tão simples como ceder um espaço de ensaio”.

Até Patrícia Vasconcelos, que se autointitula “otimista” e para quem “o céu é o limite”, reconhece que o fator sorte tem a sua influência para quem está à procura de trabalho na área. É preciso que chegue “a altura certa, ou o sítio certo”, diz a diretora de casting, acrescentando ainda que “também se trabalha para essa sorte” e o sucesso vem por consequência.

O sucesso que, para Joana Pialgata, não é sinónimo de fama. “De todo, o que eu quero é sentir-me realizada”. Em parte, esse sentimento depende de outros, por serem quem torna “tão fácil” gostar daquilo que faz. “As pessoas. A ligação que conseguimos ter uns com os outros”. Acabou de sair do ensaio, e confessa doerem-lhe as bochechas de tanto rir.

Mas essa interdependência estende-se para fora de um palco partilhado. Regressando à ideia do “sítio certo”, João Raposo Nunes confessa um ligeiro desconforto: “Quando estou onde uma pessoa que me pode dar trabalho também está, sinto-me na obrigação de lhe ir falar, porque pode ser uma oportunidade. Em certa medida é cínico. Influencia a forma como abordamos os outros”. Mas faz parte – e faz parte daquilo que é, para si, o mais difícil. “Eu posso querer realmente conhecer aquela pessoa, mas depois tenho medo que ache que estou só a ser interesseiro”.

Para essa gestão, Joana Pialgata tem uma frase: “Preciso de aprender a lidar com o meu ego primeiro, para depois lidar com o dos outros”. Ter um agente facilitaria. “Mas os agentes estão cheios e há coisas que não nos chegam”. Sem essa ajuda, a gestão de expectativas também se torna difícil, dentro ou fora do ramo. “Há quem ache que isto não é trabalho e o que eu quero é provar aos meus pais que o esforço deles contou, que isto é a sério e resulta”.

5.

Cultura: o “parente distante” que vive nas metrópoles

Descentralização. Descentralização. Descentralização. A resposta foi imediatapara todos quando confrontados com a questão do que é preciso mudar no setor. “Temos um país inteiro a ser ignorado”, atira Vasco Barroso. “O público é sempre o mesmo”, diz Joana Pialgata. “A cultura é um parente distante – sabemos que existe, mas só vemos no Natal”, continua João Raposo Nunes.

Não há solução milagrosa, e mesmo os apoios - que os três concordam serem, por si só, insuficientes -, não conseguem agarrar o problema pela raiz: a precariedade estende-se para fora da bolha das artes. Ir ao teatro, para Joana Pialgata, tornou-se numa prática “cara” e, em consequência, “elitista”, sendo preciso torná-la acessível para chegar a mais pessoas, e não aos mesmos. Mas para tal, é primeiro necessário que haja espírito crítico. “É um direito que devia ser de todos, mas que eu noto não ser o mesmo nos alunos das escolas públicas e privadas”, continua a atriz.

O ponto de partida começa em educar sobre a importância da cultura - ao contrário daquilo que João Raposo Nunes diz ser o que os decisores políticos fazem: “Impingem-na, o que não nos leva a lado nenhum”. A levar, que seja para fora das grandes cidades, onde se concentram os grandes focos culturais. “Temos de nos virar mais para as comunidades e representar as suas narrativas. Porque o teatro em um potencial enorme para criar espaços de comunicação”, acrescenta Vasco Barroso.

Conhece casos semelhantes de jovens atores? Eles correspondem ao que nos contaram os que falaram com o Expresso neste texto? Tem uma história que nos queira contar? Escreva-me para aqui.

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