Geração E

Faz sentido festejarmos o Dia da Mulher? Sim, mil vezes sim

Faz sentido festejarmos o Dia da Mulher? Sim, mil vezes sim

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

O Dia da Mulher deve ser tido como uma demonstração de união entre as mulheres, de chamar também homens para a causa, para a luta por direitos iguais, pela equidade social, pela justiça

O Dia da Mulher, as flores e as promoções

Se olharmos à nossa volta, corremos o risco de achar que o Dia da Mulher é um mero dia para mimar as mulheres com flores e promoções. Sejamos francas, é irreal que uma marca com público feminino não faça alguma campanha no Dia da Mulher. Mais digo, é importante que a faça, porque há boas formas de fazer campanha para este dia. O mais importante é que não se desvirtue o significado do Dia da Mulher. Que se usem as campanhas para potenciar a sua importância, a sua História, e não como um mero apelo ao consumismo.

Dito isto, eu, pessoalmente, estou a marimbar-me para as flores. Mas, se a leitora/ o leitor as for comprar, compre-as a uma/um florista local, apoie o seu negócio. Vou só deixar aqui a nota de que as flores mais oferecidas nesta data são as gerberas/gerbérias, das mais baratas que existem à venda. Por este motivo, passei a ver a oferta destas flores como uma referência à desigualdade salarial das mulheres — este ano a ACT notificou 1540 empresas em Portugal com desigualdade salarial superior a 5%. Assim, pelo menos, reviro menos os olhos.

Continua a fazer sentido celebrarmos este dia? Qual é a importância do Dia da Mulher e do empoderamento feminino?

O Dia da Mulher foi oficializado pela ONU em 1975, inspirado na greve das operárias.

A propósito deste dia que se avizinha, a SIC Mulher convidou-me para responder a várias perguntas, das quais fiz separadores.

Neste dia celebramos o caminho já percorrido, os direitos alcançados, celebramos as mulheres que lutaram e que lutam, que morreram para que tenhamos direitos iguais e as que continuam a morrer às mãos do machismo. O Dia da Mulher deve ser tido como uma demonstração de de união entre as mulheres (sororidade), de chamar também homens para a causa, para a luta por direitos iguais, pela equidade social, pela justiça. (Repare-se que quando se fala de direitos iguais, tem-se em conta diferenças biológicas. Nunca será um intuito feminista obrigar homens cis a engravidar… Haja noção.)

Por muito que já tenhámos alcançado muitos direitos, estes nunca devem ser tidos como garantidos. Veja-se o que aconteceu na América com a revogação do direito ao aborto voluntário. Ainda, temos de continuar a lutar pelo que falta alcançar. A História é feita de ciclos, mas é super diferente termos um come back das calças à boca de sino ou vermos ideais machistas a terem mais fãs. A igualdade de género não é uma moda, é uma necessidade.

Continuaremos a lutar para que nós, mulheres, sejamos tratadas com justiça. Porque a nossa realidade continua a ser esta:

Apagadas da História, escrita pelos homens.

A chegarmos a casa do trabalho e ainda termos o trabalho doméstico a nosso cargo.

Rejeitadas de lugares de decisão.

Ignoradas nas reuniões da empresa só para vermos a nossa ideia repetida pela boca de um homem. Ideia essa aplaudida. Ele, um génio inovador. Ela, uma chatinha com ideias irreais.

Nós, que ganhamos menos só por sermos mulheres.

Tratadas de forma ainda mais inferior se formos negras.

Que ouvimos em entrevistas de emprego “tenciona engravidar?”.

A vermos os nossos direitos negados, por muito que muitos deles estejam na lei.

Menstruadas todos os meses, mas muitas de nós, aqui e em todo o mundo, sem dinheiro para comprar artigos de recolha menstrual. “Usa o copo, usa um penso reutilizável”. Claro que é uma óptima solução, mas não nos esqueçamos das mulheres que não têm ambiente familiar ou que não estão num contexto geográfico e político — por exemplo, estarem num país em guerra — que lhes permita ferver um copo ou lavar um penso.

Acusadas de não sermos mulheres inteiras, quando não temos seios, útero ou genitália feminina.

Violadas e culpadas pela sua própria violação, pelo que vestimos, por andarmos neste e naquele sítio, pelo álcool que ingerimos. Tiba-al-Ali, mulher iraquiana, foi violada pelo próprio irmão. Os pais nunca a defenderam, escolheram proteger o irmão. Para “manter a honra da família”, o próprio pai matou Tiba-al-Ali.

Que temos medo de ir à casa de banho em campos de refugiados, porque podemos ser violadas.

Telefonemas falsos pela rua à noite, enquanto caminhamos com as chaves enfiadas por entre os dedos prontas para atacar. “Diz-me quando chegares”, diz a amiga. “Então, já chegaste?”

Casadas e violadas pelos nossos próprios maridos.

Sem possibilidades económicas para conseguirmos fugir do marido que nos agride.

A ouvirmos de amigas “aguenta, pelos teus filhos”. E minha felicidade onde fica? Quererão os meus filhos que a mãe seja violentada?

Mortas por termos dito que “não”. Não é crime passional, porque quem ama não mata: é assassinato.

“Doutor, tenho dor com a penetração” “Isso são nervos, beba um copo de vinho”.

Muitas de nós com endometriose não diagnosticada, 1 em cada 10, que passamos a vida a ouvir que “dores menstruais são normais”. Dores incapacitantes. Tonturas. Vómitos. Lágrimas. Querer morrer.

Que pomos a vida em risco com abortos caseiros ou em clínicas ilegais.

Que somos olhadas de lado se fazemos aborto voluntário, somos olhadas de lado se somos mães solteiras, somos olhadas de lado se não queremos ser mães e somos olhadas de lado se quisermos voltar para o trabalho em vez de ficar em casa.

“A primeira é do homem”, porque o prazer sexual da mulher é secundário. “Sua púdica”, “sua puta”, “com quantos homens já dormiste?”. “Gostas de mulheres? É porque nunca foste bem fodida por um homem”.

Piropos na rua, piropos no trabalho.

Nunca estamos a salvo.

É por isto que lutamos, porque enquanto houver uma mulher vítima de preconceito, a luta ainda não acabou. Pela dor de cada um, pela dor de todas.

É por isto que no dia 8 de Março saímos à rua.

Se chegar o dia, que espero não ser tão utópico quanto parece, em que a Igualdade de género e a Igualdade de oportunidades é uma realidade, continuará a ser importante que celebremos o Dia da Mulher, para que a História da desigualdade não se repita.

— Quem é a mulher que te inspira?

O Dia da Mulher também é o dia de enaltecer as mulheres que fizeram e fazem a diferença nas nossas vidas. A par da campanha #MulheresQueNosInspiram, falo aqui da minha irmã Lia. Uma mulher cheia de garra, com um cargo com alto poder de decisão, que não tem medo de se fazer ouvir e que sempre me apoiou durante a minha vida. Sendo mais velha que eu 10 anos, foi e é para mim um exemplo de força e perseverança a seguir. Só não uso a palavra “resiliência” porque, honestamente, enjoei da palavra já em 2020.

Toda a gente que queira pode fazer parte desta campanha, partilhando uma foto da mulher que a/o inspira com o hashtag #MulheresQueNosInspiram. Saiba mais sobre esta campanha aqui.

Aproveito para referir a coleção de fanzines “As Bravas”, ilustradas por mim, sobre mulheres do nosso dia-a-dia que nos inspiram. Integra o projeto “Enxoval”, criado para associação Pele e co-financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Links úteis:

Neste link pode-se ver as horas e o local da Marcha.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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