Não é só um divórcio. Michel Barnier quer “olhar para lá do Brexit”

Negociador-chefe da UE continua a não ver nada de bom na saída do Reino Unido, mas promete solidariedade europeia desde que haja reciprocidade
Negociador-chefe da UE continua a não ver nada de bom na saída do Reino Unido, mas promete solidariedade europeia desde que haja reciprocidade
Editor da Secção Internacional
No século XX Michel Barnier passou “dez anos a trabalhar para um evento de dezasseis dias”, como recordou hoje no palco central da Websummit, lembrando o papel de organizador dos Jogos Olímpicos de inverno de 1992, em Albertville. No século XXI o francês já leva três anos e meio de negociações com governos britânicos e o horizonte arrisca-se a ser bem mais longo.
Ratificar o acordo do Brexit “é um passo necessário, mas não o fim”, avisou em Lisboa. Com treino olímpico para o seu presente cargo, a que chama “escola de paciência e tenacidade”, exibiu doses iguais de uma e outra ao repetir todas as linhas vermelhas dos 27 ao mesmo tempo que exprime fé na possibilidade de um desfecho mitigado de uma mudança em que “todos perdem”. “Ainda ninguém conseguiu mostrar-me qual é o valor acrescentado do Brexit. Nem sequer Nigel Farage!”, disse.
As prioridades do momento são, segundo Barnier, manter a paz na Irlanda e construir novas relações bilaterais amistosas, dando certezas e segurança aos cidadãos de países da UE que vivem no Reino Unido e aos britânicos que estão no espaço comunitário. “São quatro milhões e meio de pessoas”, lembra.
Batata quente está em Londres
Referindo que “a UE concedeu” o adiamento da saída, pedido pelo Reino Unido para “concluir o processo de ratificação” do acordo alcançado entre Boris Johnson e os parceiros europeus, Barnier adotou a tónica de responsabilizar os britânicos, como é seu apanágio desde o referendo de 2016. Referiu as eleições de 12 de dezembro como outro motivo para o atraso do Brexit, numa altura em que é incerto que elas gerem clareza no Parlamento britânico.
Idêntico receio fora expressado minutos antes, no palco Future Societies, pelo jornalista inglês James Ball. “Das eleições pode resultar um Parlamento que não permita a ninguém formar governo”, alertou este membro do Bureau Internacional de Jornalismo de Investigação, que preferia que o Reino Unido tivesse optado por ficar na UE.
Ball acha defensável um segundo referendo porque, apesar de a consulta de 2016 representar um mandato democrático para sair, “nenhuma versão do Brexit pode unir o país”. Há dúvidas, frisa, sobre a legitimidade de uma “campanha enganosa” em que o lado ‘leave’ violou regras eleitorais e em que Facebook e Cambridge Analytica terão tido papel menos edificante.
O contraponto coube ao empresário Alex Deane, apoiante do Brexit. “Não devo ter muitas simpatias aqui”, alvitrou, conhecedor das inclinações europeístas da Websummit. Jura, todavia, que não quer fazer do país uma Coreia do Norte. Até aceita um segundo referendo se partidos com essa posição somarem maioria nas eleições de dezembro, mas sublinha os riscos de “ignorar o maior ato democrático” realizado no Reino Unido.
O verão da verdade
Barnier antevê “negociações difíceis e exigentes”. O prazo entre a data agora prevista para a saída (31 de janeiro de 2020) e o final do período de transição (31 de dezembro do mesmo ano) é curto para estabelecer a relação futura. “Serão onze meses se saírem mesmo no prazo previsto e o período de transição acabar mesmo no final de 2020”, constatou. Acresce que “os pontos de partida dos dois lados podem não ser necessariamente iguais”.
O negociador da UE teme o que possa acontecer caso o Reino Unido “queira divergir” das regulações europeias (há além-Mancha quem sonhe com uma “Singapura-do-Tamisa” e algumas das alterações exigidas por Johnson em relação ao acordo da antecessora Theresa May vão no sentido de menor apego futuro). “Maior concorrência é normal, mas a UE não tolerará vantagens competitivas injustas”, garantiu. Barnier defende “um acordo comercial com fins não apenas de lucro financeiro e económico, mas que seja do interesse do povo”. Se Londres tem insistido em trocas bilaterais sem tarifas, o francês responde: “Não bastam zero tarifas, a UE quer zero ‘dumping’”.
O próximo verão será o “momento da verdade”. Só aí se verá quanto avançaram as conversações e vai ser preciso prolongar o período transitório, afirma o homem que declara querer “olhar para lá do Brexit”.
Unidade face a novas ameaças
Frisando a importância de haver compromissos proporcionais de parte a parte, Barnier promete que “haverá sempre solidariedade”, desde que recíproca, e aponta as vantagens de uma “resposta conjunta às novas ameaças” no campo da cibersegurança ou proteção de dados.“
“Os 27 devem trabalhar com o Reino Unido para que continue a haver cooperação em matérias como ciência, inovação e comunicação entre universidades”, defendeu também Barnier. Se assim for, “as futuras gerações poderão olhar de forma positiva para isto, mesmo que concordem comigo em que todos perdemos”. No entanto, enquanto não for concluída a ratificação do acordo de saída e estabelecida uma nova relação, “o risco de precipício mantém-se e devemos manter-nos vigilantes”.
Ball e Deane tinham estado em edições anteriores da Websummit e nenhum dos dois esperava, ao regressar em 2019, que o Reino Unido ainda estivesse na UE. Numa coisa Barnier estará de acordo com os dois ingleses: nenhum quer voltar para o ano com as coisas no mesmo ponto. Mas todos sabem que os nove anos em que a Websummit ainda vai encher o Parque das Nações podem não chegar para desatar o novelo do Brexit.
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