Web Summit

“Temos que aplicar a declaração universal dos direitos humanos ao universo digital”

Adrian Lovett é presidente e diretor executivo da World Wide Web Foundation, criada pelo pai da internet Tim Berners-Lee
Adrian Lovett é presidente e diretor executivo da World Wide Web Foundation, criada pelo pai da internet Tim Berners-Lee
TIAGO MIRANDA

O presidente e diretor executivo da World Wide Web Foundation explica os motivos que levaram a organização fundada por Tim Berners-Lee a lançar um acordo entre governos, empresas e cidadãos para uma internet livre e aberta. Notícias falsas, questões de privacidade, discurso de ódio e assédio online são alguns exemplos que mostram porque é preciso consertar a internet. Além disso, “não nos podemos esquecer que metade do mundo ainda não está online”, realça Adrian Lovett

A proposta de Tim-Berners-Lee para criar uma Magna Carta para salvar a internet marcou a edição deste ano de Web Summit. Com um conjunto de princípios que governos, empresas e cidadãos devem cumprir, o pai da web quer garantir uma internet livre, aberta e um direito básico para todos. Até à data, o acordo conta com mais de 50 subscritores, entre os quais organizações da sociedade civil, empresas como a Google e o Facebook e o Governo francês.

Adrian Lovett, presidente e diretor executivo da World Wide Web Foundation, que Berners-Lee fundou, explica em entrevista ao Expresso que o documento apresentado é apenas um ponto de partida e que o objetivo é incluir novos subscritores e concordar em alguns compromissos ao longo dos próximos seis meses.

Por que motivo decidiram lançar agora um acordo para a internet?
Nos últimos anos temos vindo a aproximarmo-nos do “momento 50/50”, em que pela primeira vez mais de metade do mundo estará online. Esperávamos chegar a esse ponto há um ano, mas tem sido adiado — a nova data é maio de 2019. Este é um ótimo momento para fazer uma pausa e reconhecer a dádiva que a internet foi para ajudar a tornar as nossas vidas melhores. Contudo, apenas metade do mundo tem acesso a ela... Tim Berners-Lee partiu dessa visão de que a internet deveria estimular o melhor da humanidade e ajudar-nos a viver melhor, mas por vezes isso não acontece.

Na Web Summit falou-se do acesso à internet como um superdireito humano.
Não fui eu que o disse, foi o Brett Solomon [fundador da Access Now], não quero ficar com os créditos disso. Penso que é um ótimo conceito, porque o acesso à internet sustenta tantos outros direitos que sempre tivemos e que em muitos casos tomamos como garantidos. Isto não é apenas sobre liberdade de expressão, mas também sobre direitos fundamentais como o acesso à saúde e à educação. Cada vez mais, aqueles que não têm acesso vão precisar de o ter.

Muitos dos serviços públicos estão hoje na internet.
Cada vez mais. E a participação na democracia através do voto é cada vez mais online em alguns países. Por isso, sim, é um superdireito humano.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é suficiente para garantir os direitos digitais dos cidadãos?
Precisamos de aplicar os direitos humanos universalmente aceites ao universo digital. Parece-me razoável dizer que, se um país está a banir a internet num período de eleições ou de mudança política (o que acontece cada vez mais), há uma violação do direito básico das pessoas à liberdade de expressão, porque a internet é fundamental para o exercer. Não era o caso há 30 anos, provavelmente nem há 10... mas é agora. É neste tipo de situações que os direitos humanos já existentes devem ser aplicados de forma ativa ao contexto digital. Seria pouco produtivo estarmos a definir novos direitos digitais universais: levaria muito tempo e ficaríamos presos em algumas questões.

Este acordo surge na sequência de casos como o da Cambridge Analytica ou das notícias falsas que causam violência no mundo real, como em Myanmar e em outros países asiáticos?
Sem dúvida. Em 18 meses vimos a forma como a internet foi sendo usada ou abusada, com efeitos terríveis — em alguns casos para as vidas humanas, como em Myanmar, e também para a democracia (nos EUA e no Reino Unido). Mas há muitos outros exemplos que não fazem manchetes nos jornais: casos diários de discurso de ódio, assédio a mulheres online, bloggers, entre outros. Além disso, não nos podemos esquecer que metade do mundo ainda não está ligado à internet.

Como chegámos a este ponto? Deixámos a internet crescer sem regras?
A internet cresceu de forma muito orgânica e impulsionada por forças de mercado: as pessoas que tinham capacidade para comprar dispositivos e dados ficaram online. E isso aconteceu maioritariamente nos países mais desenvolvidos. Os motivos para as pessoas não estarem online em lugares onde não existe muita conectividade são quatro. O primeiro tem a ver com a capacidade técnica de terem acesso a 4G [quarta geração das redes móveis]. Mas não é o único, porque dois terços do mundo consegue tecnicamente conectar-se, mas apenas metade está online. Há ainda questões de disponibilidade financeira, literacia digital e conteúdo. O conteúdo online é relevante? Está na língua certa?

Uma grande percentagem dos excluídos são mulheres. São apenas as que estão em países em desenvolvimento ou também as de outros países?
Ambas. As mulheres de países em desenvolvimento têm 50% menos probabilidade de ficarem online. Mas é também evidente que, a nível global, as mulheres estão a ter uma experiência online diferente da dos homens. Descobrimos que nos países desenvolvidos as mulheres têm menos probabilidade do que os homens de se candidatarem a um emprego online, expressarem uma opinião forte nas redes sociais... Precisamos de perceber como é que as mulheres da Europa, América do Norte e de outras podem ter uma experiência diferente, mais completa e mais segura na internet.

Em alguns casos, os algoritmos são preconceituosos em relação às mulheres?
Sim. O problema muitas vezes está no facto de os dados que alimentam os algoritmos incluírem algum tipo de preconceito. Se construímos os dados apenas com base em pessoas que vivem na Califórnia, estes não serão muito representativos. E, no que toca ao género, provavelmente os programadores que os desenvolveram foram homens e por isso há um preconceito inconsciente nas pessoas que desenvolvem estas tecnologias.

O pai da internet e criador da Web Foundation, Tim Berners-Lee, apresentou um Acordo para a Internet, durante a cerimónia de abertura da Web Summit
JOSÉ SENA GOULÃO / LUSA

Como se resolve isso?
Temos de trazer mais mulheres e jovens para a tecnologia e ensiná-las a aprenderem a programar nas escolas. No ano passado estive em Abidjan, em Côte d'Ivoire, na África Ocidental, a formar jovens e raparigas para a literacia digital. Elas foram umas das pessoas mais dinâmicas, inteligentes e otimistas que conheci! E vi como pôr uma pequena ferramenta nas suas mãos as ajudava a crescer. Uma parte da solução é garantir que há mais mulheres na tecnologia e isso pode ser feito ao nível da comunidade, mas também pelas grandes empresas tecnológicas e por Silicon Valley.

Quem é então responsável por solucionar os problemas de acessibilidade e de acesso à internet? Nos últimos anos estivemos apenas focados naquilo que as tecnológicas podiam fazer, mas isso parece estar a mudar.
Será mais equilibrado. Lançámos responsabilidades para governos, empresas e cidadãos. Existe uma responsabilidade do Governo em garantir um enquadramento para o que as empresas podem investir e construir, preocupando-se também com essas populações mais desamparadas, que não são vistas como uma oportunidade de mercado e comercial óbvia. O papel do Governo é garantir que as populações desamparadas e marginalizadas são alcançadas, dando orientações sólidas ao sector privado e encontrando formas de os incentivar a olhar para elas. Por vezes, cabe também aos próprios Governos criarem hotspots públicos de wi-fi em áreas urbanas, já que esta é cada vez mais uma forma das pessoas se conectarem à internet.

Neste momento, só o Governo francês apoia o acordo.
É verdade, mas temos várias conversas a acontecer e esperamos que haja progressos com outros Governos.

Quais?
A minha equipa está a fazer esse trabalho por todo o mundo, por isso não tenho a certeza quais são. Mas são alguns. Desde que lançámos a iniciativa na segunda-feira, o Governo norueguês, por exemplo, contactou-nos para dizer que querem ver o que precisam de fazer para assinar o acordo. Vamos falar com eles na próxima semana e veremos o que é necessário.

Com quantos Governos estão a falar?
Para já menos de dez. A primeira coisa que quisemos fazer nesta primeira fase do contrato foi mostrar um verdadeiro envolvimento de empresas e organizações da sociedade civil. É por isso que a maioria dos assinantes são desses dois grupos.

Mas saber quais os Governos que estão neste acordo será um ponto crucial. Acredita que é possível ter a China (o país do mundo com mais pessoas online) neste acordo?
É uma pergunta muito difícil, não tem uma resposta óbvia. Penso que isso não acontecerá em breve. A internet que está a emergir na China é muito diferente daquela que queremos garantir no resto do mundo. Mas penso que o trabalho para nós é um pouco como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas há dois ou três anos, que mais de 190 países assinaram. Sabemos que alguns países não o vão fazer, outros quererão fazê-lo mesmo que ainda não estejam nessa fase... Há outros podem nunca aí chegar, sinceramente. Mas penso o que estamos a fazer com o acordo para a internet, de forma semelhante, é dizer: aqui está um conjunto de princípios que podem assinar. Não estamos a dizer que já estão todos lá, o que estamos a dizer é que estas são ferramentas de trabalho para alcançar compromissos e concordar com um processo onde todos serão responsabilizados e transparentes.

Como medimos se um país ou região está a cumprir?
Este é um processo com três fases. Numa primeira fase temos estes princípios. A segunda fase é, nos próximos seis meses, tornar estes princípios em compromissos concretos. E a terceira fase é estabelecer métricas de responsabilização. Ainda estamos a trabalhar nisso. Mas há exemplos para os quais podemos olhar.

Não corremos o risco de termos apenas princípios e orientações que, na prática, não serão cumpridos? Como está a acontecer com o Regulamento Europeu de Proteção de Dados (RGPD)…
É um risco, sem dúvida. Especificamente no que diz respeito ao RGPD e, mais genericamente, neste tipo de princípios. Qualquer pessoa que tem um compromisso pode quebrá-lo, por isso precisamos de uma combinação equilibrada entre o enquadramento legal e regulatório, que mantenha as empresas e os Governos nestes compromissos, e um certo tipo de 'fiscalização' por parte dos cidadãos. Penso que no caso do RGPD as pessoas têm consciência de que levará um ano ou dois antes de estar completamente implementado. É verdade que há coisas que os países devem fazer para se prepararem, mas mesmo assim estas normas para protegerem a privacidade das pessoas elevaram a fasquia. E não só na Europa: começamos a ver as empresas que estão na Europa a adotarem também essas regras noutros países, porque não querem trabalhar no espaço europeu de forma diferente da que trabalham noutras regiões.

Como podem os cidadãos ajudar a alcançar estes objetivos?
Há duas grandes coisas que os cidadãos podem fazer. Uma é, como disse Tim Berners-Lee, lutar pela internet. Não tomá-la como garantida. Se passamos uma quantidade enorme do nosso tempo na internet, devemos passar algum tempo a lutar por ela e a envolvermo-nos. Por exemplo, através da campanha da Web Foundation: vestir a camisola e sair à rua para dizer: ‘insistimos que a internet seja aquilo para que foi criada’, uma internet para todos e um bem público que estimule a humanidade. Ou seja, garantir que as empresas e os governos fazem a sua parte. Mas existe também trabalho a fazer na forma como nos comportamos online.

Tendo em conta o estado da internet hoje, como olha para ela: com angústia ou esperança?
Com mais esperança do que angústia. Em parte porque temos que ser otimistas, senão não nos levantávamos de manhã [risos]. Mas também porque penso existirem bases para o otimismo. Tim Berners-Lee diz muitas vezes que todos desafios que vemos, por mais importantes que sejam, são como bugs no sistema. Os bugs são criados por seres humanos e podem ser resolvidos por eles. Penso que podemos ser esperançosos e otimistas e ter nas nossas mãos e nas nossas cabeças as ferramentas que precisamos para ultrapassar estes problemas - seja garantindo que a internet é segura, diversa e certa para quem já tem acesso a ela, seja para levá-la a quem não a tem. Vamos ter que trabalhar nisso e exigirá a ajuda de todos: governos, empresas, utilizadores e cidadãos.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mjbourbon@expresso.impresa.pt

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