Neeleman recebeu €55 milhões para deixar a TAP, mas nem um ex-governante sabe explicar como se chegou ao valor
António Pedro Ferreira
O acordo para a saída de Neeleman foi fechado em julho de 2020, mês depois de Miguel Cruz chegar à secretaria de Estado do Tesouro. Segundo este, o montante serviu para pagar a posição acionista, e parte das prestações acessórias, mas não só
Permanece um mistério a fórmula definida para chegar aos 55 milhões de euros que David Neeleman levou para sair da TAP, e Miguel Cruz, o ex-secretário de Estado do Tesouro que foi antes disso presidente da Parpública, também não foi capaz de esclarecer.
“Os 55 milhões de euros foram alcançados por acordo entre os advogados”, afirmou Miguel Cruz na Comissão Parlamentar de Inquérito esta terça-feira, 30 de maio. Como? O ex-secretário de Estado não sabe explicar, apesar de Bernardo Blanco, da Iniciativa Liberal, ter insistido na questão, e Bruno Dias, do PCP, ter voltado a colocá-la. Os advogados eram, do lado do Estado, Jorge Bleck da Vieira de Almeida e Associados, e do lado de David Neeleman, Diogo Perestrelo, da PMLJ.
Os 55 milhões pagos a David Neeleman há de ser a percentagem de alguma coisa, insistiu Bruno Dias. Depois de dizer que terão sido usados dois referenciais - a venda a um potencial comprador e um valor teórico de zero (já que se estava numa pandemia) -, Miguel Cruz acaba por dizer: "Não me parece que seja uma percentagem". Foi “o valor mínimo que permitiu salvar a TAP”, defendeu.
“Eles não são aleatórios. Há um referencial máximo e a intenção do Estado era ir para referencial mínimo. A única coisa que não posso concordar é que 224 milhões fosse referencial máximo, o valor tinha de ser inferior”, defendeu.
Bruno Dias diz que se previa que caso houvesse uma nacionalização, a Atlantic Gateway tinha direito a receber os 224 milhões de prestações acessórias (empréstimos à TAP que tinham sido feitos em 2015), mais os valores das ações, mais 20%. Miguel Cruz reafirma: "Quando entrei na Parpública já tinham sido feitos os acordos". Recorda depois que entra na Parpública, acionista da TAP, a 1 fevereiro de 2017 e que já havia um Memorando de Entendimento já assinado, que definia as relações entre os acionistas.
Porém, o deputado do Bloco de Esquerda Pedro Filipe Soares desafiou o entendimento de que aquele valor seria recuperável, porque se houvesse outra alternativa, a insolvência culposa da TAP (e Neeleman dizia não ter dinheiro para a capitalizar após os impactos da pandemia), o empresário não teria direito a nada. Um entendimento de insolvência dolosa de que Miguel Cruz não comunga.
“A negociação foi feita por escritórios de advogados, com determinado enquadramento político, há enquadramento do ponto de vista de referenciais de negociação. Ela é uma negociação entre advogados, no limite o Estado podia ter dito que não aceitava a negociação”, ressalvou Miguel Cruz, dizendo que a companhia aérea, em plena pandemia, estava numa situação muito complicada.
António Pedro Ferreira
A importância da não litigância
O acordo para a saída de Neeleman foi fechado em julho de 2020, quando Miguel Cruz chegou à secretaria de Estado do Tesouro em junho de 2020, com João Leão a assumir o Ministério das Finanças anteriormente ocupado por Mário Centeno – ambos ainda serão ouvidos na CPI na próxima semana. Pedro Nuno Santos, que era ministro das Infraestruturas, e o seu secretário de Estado, que acompanharam o processo, falam na semana seguinte.
Nas suas respostas, Miguel Cruz disse que os 55 milhões serviram para pagar a posição acionista, e parte das prestações acessórias, mas não só: “O acionista David Neeleman abdica de qualquer tipo de litigância associada ao facto de o Estado ser maioritário na companhia”. “O tema da litigância era absolutamente importante”, frisou.
Pedrosa nada levou
As prestações acessórias são empréstimos que, no caso da TAP, tinham o compromisso de ficar por 30 anos, pelo que foram consideradas como capital e não um financiamento do acionista. Só que elas acabaram por ser absorvidas, para cobrir prejuízos, e não devolvidas ao acionista. O que aconteceu foi uma compensação, não a devolução, já que não foi a companhia aérea a fazer o pagamento a Neeleman – foi a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) que desembolsou aquelas verbas. Mas, como referido, não se sabe qual a fórmula.
David Neeleman recebeu o dinheiro para sair da TAP, mas o seu parceiro, Humberto Pedrosa, nada recebeu. “O Sr. David Neeleman, que quando a coisa começa a ficar mais complicada, não tem dinheiro para pôr, tem uma determinada postura, e o Dr. Humberto Pedrosa disse aquilo que aqui referiu: acreditava na TAP e ia acompanhar a TAP nesta jornada”. Acompanhou, o Estado meteu dinheiro e acabou a tornar-se acionista maioritário, sem que as ações de Pedrosa fossem pagas.
Ou seja, o Estado pagou ao acionista que o Governo temia poder recorrer a tribunal, mas nada desembolsou ao empresário da Barraqueiro, que teve uma postura completamente contrária e de apoio à companhia aérea, dicotomia assumida por Miguel Cruz na sua audição.
Fundos Airbus também desconhecidos na Parpública
O ex-governante assegurou ainda que desconhecia a existência dos fundos Airbus – o negócio de troca de aviões que permitiu a Neeleman capitalizar a TAP em 2015 aquando da privatização da companhia aérea. “Eu não sabia dos fundos Airbus. Não eram visíveis nos documentos”, sublinhou sobre o período em que estava na Parpública (2017 a 2020). E afirmou ainda: "Os documentos a que tive acesso não havia referência aos fundos Airbus. Não conhecia o tema".
Miguel Cruz esclareceu igualmente que havia uma comissão especial de acompanhamento da privatização, salientando ainda que pediram muita informação e "nunca a questão dos fundos Airbus apareceu". Só soube deles já perto de sair da secretaria de Estado do Tesouro, no início de 2022.