Sistema financeiro

BCE deve voltar a reduzir as taxas de juro mal a inflação esteja controlada, recomenda Centeno

BCE deve voltar a reduzir as taxas de juro mal a inflação esteja controlada, recomenda Centeno
TIAGO MIRANDA

Numa completa novidade comunicacional, o governador do Banco de Portugal publicou uma análise da economia portuguesa e da política monetária europeia. Nela defende que o BCE deverá tornar claro que os cidadãos devem esperar descidas nas taxas de juro mais à frente e que as “contas certas” são para manter

Mal a inflação esteja controlada, o Banco Central Europeu (BCE) deverá começar um ciclo de descidas das taxas de juro, defende o governador do Banco de Portugal (BdP), Mário Centeno, numa análise divulgada esta segunda-feira, 4 de setembro. E o objetivo de aproximar a taxa de inflação para a meta dos 2% está quase a ser atingido.

“A inflação deverá aproximar-se dos 2%. Na ausência de novos choques e com a materialização da transmissão da política monetária à economia, o objetivo de médio prazo está ao nosso alcance no horizonte próximo”, garante. “Assegurada a convergência para a estabilidade de preços, a política monetária deverá traçar um caminho previsível de redução das taxas de juro, mas longe dos tempos de taxas de juro de zero ou mesmo negativas”, defendeu.

A possibilidade de o BCE subir demasiado as taxas de juro começa a ser um risco concreto para o governador do BdP, reforçou Centeno, em linha com os vários avisos de que é necessário ser prudente nas decisões de política monetária: “o risco de “fazer demais” começa a ser material; a inflação tem-se reduzido mais rapidamente do que subiu e a economia está a ajustar-se às novas condições financeiras”.

E a redução da dívida - que se traduz no discurso político pelo bordão “contas certas” - deve continuar a ser prioridade. A nível orçamental, o governador prescreve a manutenção “do equilíbrio para reduzir a dívida num contexto de inflação baixa e taxas de juro mais elevadas. A política orçamental deve continuar a orientar-se pela noção de que não se alterou aquilo que há cinco anos não era financiável. O peso da despesa permanente na economia continua acima de 2019, mas deve reduzir-se para garantir a sustentabilidade ao longo do ciclo económico.

“Num momento de possível mudança do ciclo económico, não podemos ser apanhados desprevenidos, como tantas vezes aconteceu. No último episódio recessivo, pela primeira vez em muitas décadas, a dívida total caiu 7,7 pontos percentuais do PIB. As empresas terminaram 2022 com a dívida nominal, líquida de depósitos, inferior à de 2019 em 4 mil milhões de euros e a das famílias em 9 mil milhões de euros”, assinalou Mário Centeno.

“O espaço para atuar de forma contracíclica permitiu a coordenação das políticas para responder à crise pandémica; deverá ser assim quando o ciclo se inverter. A estabilidade financeira e a previsibilidade dos modelos de negócios potenciam o investimento. Compete aos decisores honrar estes princípios”, acrescenta o antigo ministro das Finanças, cuja controversa política de cativações deverá ser aligeirada no próximo Orçamento do Estado, oito anos depois.

O Plano de Recuperação e Resiliência deve tornar-se num momento único de integração europeia e de transformação estrutural; longe vão os tempos das “rotundas”, escreve Mário Centeno na análise publicada esta segunda-feira

“Portugal tem sabido corrigir a mão”

O governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, inaugurou esta segunda-feira uma nova ferramenta de comunicação do banco central português: as análises do governador, com a sua avaliação da evolução do País. A análise abrange as políticas do Governo (atual e anterior) e do Banco Central Europeu (BCE), reservando elogios para o primeiro e uma postura cautelosa para o segundo. Na sua análise, Centeno é elogioso em relação a uma política económica e orçamental que, em traços gerais, é a da última década e que coincide em grande parte com o seu mandato como ministro das Finanças.

A crise pandémica e a invasão da Ucrânia pela Rússia criaram vários problemas, com a inflação à cabeça. E, apesar de todos os constrangimentos, “encontramo-nos perante esta encruzilhada, num dos melhores momentos da economia portuguesa, em resultado da transformação das suas instituições ― legais, sociais e culturais ―, que determinou a acumulação dos fatores estruturais de crescimento e sustentabilidade: capital humano, capital físico e conhecimento tecnológico. Em todas estas dimensões Portugal tem sabido corrigir a mão”, garantiu.

“Enquanto a área do euro cresceu 15% nos primeiros 15 anos deste século, Portugal ficou-se por um parco 1%! Em contraste, desde 2015 crescemos 17% e convergimos com a área do euro, que cresceu 13%. Depois de atingir um máximo em 2019, a atividade económica recuperou rapidamente da pandemia. Em 2023, a atividade, o emprego e os salários estão em máximos, colocando a economia de novo acima dos valores potenciais”, descreveu.

Alguns dos grandes motores de transformação da economia portuguesa foram o aumento do investimento e a aposta das empresas nos mercados externos, sublinha Centeno: “A acumulação de fatores produtivos estende-se ao investimento, que nos últimos oito anos cresceu 48%, acima dos 25% da área do euro, sustentado em critérios de exigência e rentabilidade. O investimento privado cresceu 54%, e em 2022 representava quase 90% do total”.

“Em simultâneo, as empresas aumentaram a autonomia financeira. Se até 2015, o passivo representava mais de duas vezes os capitais próprios, hoje caiu para menos de 1,5 vezes. Nesse período, a abertura ao exterior levou o peso das exportações na economia para 50% em 2022. Exportações e investimento têm os maiores contributos para o crescimento”, descreve.

Não menos importante, o investimento público tornou-se mais exigente e produtivo, sendo a capitalização da Caixa Geral de Depósitos um exemplo destacado. O Plano de Recuperação e Resiliência deve tornar-se num momento único de integração europeia e de transformação estrutural; longe vão os tempos das “rotundas””, ironizou.

“A situação financeira caracteriza-se por um sistema bancário mais capitalizado, devido aos investimentos feitos em 2016 e 2017 e ao sucesso da reestruturação das instituições mais relevantes. O peso dos créditos improdutivos no total do crédito está muito próximo do da União Europeia (3,1% vs 1,8%) e os custos são muito inferiores (rácios cost to income de 33% vs 59%). Após vários anos de margens financeiras deprimidas em virtude das baixas taxas de juro, a rentabilidade do sistema bancário restabeleceu-se”, defendeu.

Famílias em “aperto financeiro”

Centeno reconhece que a “encruzilhada” que tantas dores de cabeça está a dar aos políticos e governadores de bancos centrais “traz maior aperto financeiro a famílias e empresas em resultado do ciclo de política monetária”.

“No final de 2023, cerca de 70 mil famílias poderão vir a ter despesas com o serviço do crédito à habitação permanente superiores a 50% do seu rendimento líquido; no final 2021, já eram 36 mil famílias”, avisa.

O governador do BdP apela a que, para “mitigar estes riscos”, entrem em jogo ”apoios públicos" e que haja um envolvimento do setor bancário “na prevenção do incumprimento”. Outras vias passam pelo “reforço da poupança e a redução do endividamento".

Contudo, disse que “em resultado do maior peso de empréstimos a taxa fixa nos restantes países da área do euro, a média das taxas praticadas em Portugal nos empréstimos à habitação foi sistematicamente inferior, invertendo-se esta situação desde o final de 2022.”

E defendeu que “nos depósitos é fundamental continuar a criar condições para estimular a poupança. A taxa de juro média, próxima de zero há um ano, tem vindo a subir, atingindo 1,7% para os particulares e 3% para as empresas”.

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