“Alcançámos progressos significativos, mas – confrontados com um processo inflacionista mais persistente – não podemos vacilar, nem ainda declarar vitória”, disse esta terça-feira em Sintra a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, no discurso de abertura do fórum anual da instituição, que decorre até quarta-feira.
Christine Lagarde antecipou que, “exceto se ocorrer uma alteração substancial das perspetivas de inflação, continuaremos a aumentar as taxas em julho [na próxima reunião, daqui a um mês]” e deixou bem vincado que o ciclo de aumento dos juros não vai parar até que “as taxas de juro diretoras do BCE atinjam níveis suficientemente restritivos, para lograr um retorno atempado da inflação ao objetivo de médio prazo de 2%”. Voltou a garantir que os juros elevados serão mantidos "nesses níveis enquanto for necessário”.
Recorde-se que na última reunião de política monetária, realizada a 15 de junho, o BCE decidiu subir os juros em 25 pontos-base, acumulando um ciclo de aumentos de 400 pontos-base (4 pontos percentuais) desde julho do ano passado. A taxa principal do banco central está, agora, em 4%, influenciando o custo do crédito a famílias e empresas, e a taxa de remuneração de depósitos dos bancos subiu para 3,5%, abrangendo mais de 4,1 biliões de euros colocados pelo sector bancário da zona euro na chamada facilidade permanente de depósito do BCE.
Já está em curso uma “segunda fase” do processo inflacionista
A intervenção de abertura da francesa que dirige o BCE centrou o foco no combate aos “espíritos vacilantes”, citando a ativista norte-americana socialista Helen Keller, a primeira surda e cega a graduar-se com um bacharelato. Keller escreveu, em 1903, que "os nossos piores inimigos não são circunstâncias beligerantes, mas espíritos vacilantes”.
Lagarde repisa que não há lugar para vacilação, tanto mais que entrámos numa “segunda fase” do processo inflacionista. A inflação global tem descido, mas a que é referida tecnicamente como subjacente (excluindo as componentes mais voláteis, como a energia), continua em níveis persistentemente elevados.
Os economistas do BCE prevêem para este ano uma inflação global de 5,4% e uma inflação subjacente de 5,1%. Nem mesmo em 2025, a inflação - nas duas métricas - descerá para 2%, mantendo-se acima desse objetivo central da política monetária do BCE.
Na mira do BCE estão, agora, uma vaga altista de salários nominais nos próximos anos e a estratégia empresarial de conservar ou mesmo aumentar margens de lucro no quadro do processo inflacionista.
A “segunda fase” do processo inflacionista tem agora protagonistas a que não se pode fechar os olhos, alerta Lagarde. Na mira estão uma vaga altista de salários nominais nos próximos anos e a estratégia empresarial de conservar ou mesmo aumentar margens de lucro no quadro do processo inflacionista. Lagarde não chama a este último risco o que muitos analistas já designam por greedflation - ganância inflacionista.
O primeiro protagonista é a dinâmica salarial. “Os trabalhadores ficaram, até à data, a perder com o choque inflacionista [da primeira fase], tendo sofrido grandes decréscimos dos salários reais, o que está a desencadear um processo sustentado de ‘convergência em alta’ dos salários, com os trabalhadores a tentarem recuperar perdas. Tal está a fazer subir outras medidas da inflação subjacente que captam mais pressões internas sobre os preços – em particular medidas da inflação sensível aos salários e medidas da inflação interna”, avisa a presidente do BCE.
O que isto significa, a prazo, segundo as projeções dos economistas do banco central, é que “os salários crescerão mais 14%, entre agora e o final de 2025, e que, em termos reais, recuperarão plenamente o nível anterior à pandemia”. E Lagarde acrescenta: “O efeito da subida dos salários na inflação foi recentemente amplificado por um crescimento da produtividade mais baixo do que o projetado anteriormente, o que está a gerar custos unitários do trabalho mais elevados”.
A fraqueza da produtividade vem do facto de que o crescimento (e retenção) do emprego se está a dar em sectores “com um crescimento da produtividade estruturalmente reduzido”, como a construção, a administração pública e os serviços.
O segundo protagonista são as empresas. “A análise de sensibilidade realizada por especialistas do BCE sublinha os riscos que enfrentaríamos se, ao invés, as empresas tentassem defender as suas margens. A título de exemplo, caso as empresas recuperassem 25% da margem de lucro perdida que as nossas projeções indicam, a inflação em 2025 seria substancialmente mais alta do que a projeção de referência – em quase 3%”, referiu a presidente do BCE.
“Transmissão” do aperto para a economia real ainda é "incerto"
A persistência do BCE em manter uma estratégia de aumento de juros sem vacilação advém ainda de uma outra “incerteza” - a de que o aperto monetário irá ter um impacto suficientemente restritivo na economia real em tempo útil.
Até agora isso não é claro: “A incerteza acerca da transmissão da política monetária resulta do facto de a área do euro não ter atravessado uma fase sustentada de aumentos das taxas de juro desde meados da década de 2000 e de as taxas nunca terem subido tão rapidamente. Tal levanta a questão de quão célere e fortemente a política monetária será transmitida às empresas – por via de despesas sensíveis aos juros – e às famílias, através dos pagamentos de crédito à habitação”, refere Lagarde, antes de avançar para o detalhe.
Os dois protagonistas envoltos em incerteza são sobretudo dois: o sector dos serviços e o tipo de famílias endividadas.
“No caso das empresas, a análise do BCE conclui que os choques de política monetária são, por norma, transmitidos mais rapidamente e de modo mais forte à indústria transformadora, refletindo a maior sensibilidade do setor às taxas de juro, sendo o seu impacto nos serviços mais fraco e desfasado. A principal questão que hoje se coloca é saber se o setor dos serviços acabará por ‘convergir em baixa’ – o que já observámos em ciclos anteriores – ou se permanecerá imune aos efeitos do aumento da restritividade da política monetária durante mais tempo do que no passado, atendendo à força da procura e do emprego no setor”, avança Lagarde.
“No caso das famílias, existem provas de que, no presente ciclo de aumento da restritividade monetária, demorará mais tempo até as alterações da política monetária se repercutirem nos encargos com juros, dado que a percentagem de famílias com empréstimos hipotecários de juro fixo é mais elevada do que em meados da década de 2000. Ao mesmo tempo, quando se verificar uma reavaliação do preço das hipotecas, o efeito restritivo poderá ser maior: os rácios da dívida bruta em relação ao rendimento, que realçam a capacidade de serviço da dívida, são mais elevados do que em anteriores ciclos de aumento da restritividade monetária, ao passo que a percentagem de proprietários de habitação com uma hipoteca aumentou”.
Em suma, a ‘resistência’ do sector de serviços ao dinheiro mais caro e o atraso no choque decisivo sobre as famílias endividadas pode levar a que o ciclo de subida dos juros pelo BCE leve mais tempo e seja mais violento.