Economia

Salários globais registam primeira perda real do século e conflitos sociais podem aumentar, alerta OIT

Protestos em Colombo, Sri Lanka
Protestos em Colombo, Sri Lanka
ADNAN ABIDI/REUTERS

Os salários reais caíram a nível global no primeiro semestre deste ano devido à inflação, diz a Organização Internacional do Trabalho, apontando para o impacto no aumento da pobreza e da desigualdade

A inflação em alta em grande parte do globo fez com que os salários globais caíssem, em termos reais, 0,9% no primeiro semestre de 2022, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), num relatório divulgado esta quarta-feira, 30 de novembro. É a primeira vez no século XXI que as remunerações caem em termos reais, isto é, ajustadas à subida dos preços.

A organização alerta que esta dinâmica, a manter-se, pode resultar em conflitos sociais em todo o mundo e na perda de paz social.

Os dados do Relatório Global sobre os Salários 2022-2023 mostram que a inflação tem acelerado mais entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento: as economias avançadas do G20 viram os salários cair 2,2% no primeiro semestre deste ano. Já entre os países em desenvolvimento do G20, os salários reais cresceram 0,8%, mas ficaram 2,6% abaixo do semestre correspondente de 2019, o último ano livre do efeito da pandemia da covid-19.

Citado no comunicado, o diretor-geral da OIT, Gilbert F. Houngbo, considera que a perda de poder de compra, resultado de “múltiplas crises globais”, coloca “dezenas de milhões de trabalhadores e trabalhadoras em situação dramática, uma vez que enfrentam instabilidades crescentes”.

E o mesmo responsável antecipa que “as desigualdades salariais e a pobreza aumentarão caso o poder de compra dos trabalhadores de mais baixos salários não seja mantido (…). Tudo isto poderá contribuir para o aumento de conflitos sociais pelo mundo e para enfraquecer o objetivo de atingir prosperidade e paz para todas as pessoas”.

Inflação afeta mais quem tem menos

Depois de uma crise provocada pelo início da pandemia da covid-19, que parou as economias globais com impacto imediato no emprego e nos rendimentos das famílias, somou-se ao rol de fatores de instabilidade a invasão da Ucrânia pela Rússia e a reconfiguração das cadeias de abastecimento globais.

Este cocktail de crises - ao qual se soma o aquecimento global - está na origem do surto inflacionista atual, com impacto mais pronunciado junto das famílias de baixo rendimento, que tendem a gastar a maior parte dos salários em bens e serviços de que necessitam para viver, como alimentação e energia - os dois segmentos com maiores aumentos de preços a nível global.

“O relatório mostra que o crescimento da inflação tem um grande impacto no custo de vida das pessoas com mais baixos rendimentos. Isto deve-se ao facto de estes grupos gastarem uma grande parte do seu rendimento em bens e serviços essenciais, que estão geralmente sujeitos a maiores aumentos de preços, mais do que os produtos não essenciais”, descreve a OIT.

Quem recebe salário mínimo sofre desproporcionalmente o impacto da subida dos preços, com os dados da OIT a mostrarem “que, apesar dos aumentos nominais, o crescimento acelerado da inflação traduz-se na rápida deterioração do valor real dos salários mínimos em muitos dos países para os quais há informação disponível”. Isto é, apesar de aumentos “no papel” do salário mínimo, continuam a ser insuficientes para compensar a perda de poder de compra.

A OIT exorta os governos globais a adotarem “medidas adequadas que contribuam para a manutenção do poder de compra e do nível de vida dos trabalhadores e trabalhadoras e das suas famílias” de forma “urgente”.

Na lista de medidas aparecem atualizações dos salários mínimos, que “podem ser um instrumento eficaz, tendo em conta que 90 por cento dos Estados-membros da OIT têm sistemas de salário mínimo em vigor”, segundo o comunicado da organização.

A OIT defende que “um forte diálogo social tripartido e a negociação coletiva podem também contribuir para alcançar atualizações salariais adequadas durante esta crise”. A organização sugere a implementação de “medidas dirigidas a grupos específicos da população, como a atribuição de vales para compra de bens essenciais às famílias de mais baixo rendimento, ou a diminuição do IVA nestes bens”, com a vantagem de contribuírem para o abrandamento das taxas de inflação.

Salários caem no Ocidente, sobem (mas menos) na Ásia

E há diferenças regionais vincadas, em particular entre o chamado Ocidente e os países asiáticos. Na União Europeia, os salários reais cresceram 1,3% em 2021 - muito graças às medidas de apoio pandémico, realça a OIT - mas caíram 2,4% no primeiro semestre deste ano. Na América do Norte, que compreende o Canadá e Estados Unidos da América, o crescimento do salário real médio estagnou no ano passado e no primeiro semestre de 2022 cifrou-se nos -3,2%.

Na Europa de Leste, os salários reais cresceram 4% em 2020 e 3,3% em 2021, para caírem 3,3% no primeiro semestre deste ano. Na América Latina e Caraíbas, houve uma quebra de 1,4% em 2021 e de 1,7% no primeiro semestre de 2022. E nos países africanos, a queda foi de -1,4% em 2021 e de -0,5% de janeiro a junho de 2022.

Com aumentos salariais reais estão os países asiáticos e do Pacífico, e os estados árabes, não escapando a abrandamentos, porém, no primeiro semestre. Na região Ásia-Pacífico os salários reais cresceram 3,5% no ano passado, mas o crescimento abrandou para os 1,3% no primeiro semestre.

“Se os dados da China forem excluídos dos cálculos – considerando o peso que o país tem na economia da região – o crescimento real dos salários foi muito menor, cifrando-se em 0,3% em 2021 e 0,7% no primeiro semestre de 2022”, detalha a OIT.

Já na Ásia Central e Ásia Ocidental a taxa de crescimento dos salários reais foi de 12,4% em 2021, caindo fortemente para um crescimento de 2,5% nos primeiros seis meses deste ano. Nos Estados Árabes, a OIT diz que cálculos preliminares “apontam para um crescimento modesto dos salários a rondar os 0,5% em 2021 e os 1,2% em 2022”.

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