
A política absorve quase 500 funcionários públicos por ano. As licenças sem vencimento, via verde para o sector privado, outro tanto. Regressam quando querem e podem voltar a sair. É uma gestão eficiente?
A política absorve quase 500 funcionários públicos por ano. As licenças sem vencimento, via verde para o sector privado, outro tanto. Regressam quando querem e podem voltar a sair. É uma gestão eficiente?
Todos os anos saem do Estado quase 500 funcionários públicos para a atividade política e outros tantos com licença sem vencimento, também para o sector privado. Quando os mandatos políticos são interrompidos ou se cansam das suas escolhas profissionais, têm sempre um lugar de recuo — uma garantia vitalícia de emprego e salário. Assim funciona a Administração Pública e estas são também as práticas de entidades públicas e reguladores, que se adaptam aos movimentos, muitas vezes pendulares, dos funcionários.
Não são conhecidos dados exatos sobre quantos lugares estão vazios à espera que os seus ocupantes decidam, um dia, regressar nem qual a duração destas ausências (ver gráficos). Mas há vários casos que ilustram o quadro de garantias que o Estado e outras entidades de direito público concedem aos funcionários que se candidatam a cargos políticos, que vão para gabinetes de assessoria ou fazem outras incursões, entre as quais empresas privadas. Por exemplo, Fernando Medina, quando, em outubro, perdeu as eleições, regressou à AICEP, onde ingressou em 2003 e esteve dois anos. Entre 2005 e 2021 exerceu cargos políticos e a eles deverá voltar após dia 30, já que faz parte da lista de candidatos a deputados pelo PS. Entretanto, o lugar na AICEP ficará à sua espera. Antes dele, em 2019, Matos Rosa, antigo braço direito de Passos Coelho, regressou à Autoridade Tributária (AT). Depois de 14 anos de atividade parlamentar, voltou à sua posição de técnico de administração tributária.
Mais atrás na escala de antiguidade, e mostrando que os movimentos pendulares com garantia de recuo não se cingem à política, está, por exemplo, Carlos Tavares. Depois de passar pelo Governo de Durão Barroso, voltou à CGD, onde estivera nos anos 90. Em 2005 assumiu a presidência da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, ali ficando até 2016. Aí, regressa à CGD, como assessor da administração, de onde entretanto saiu para o Montepio.
Olhando para a frente, André Ventura, o líder do Chega, poderá voltar a ser funcionário público se algum dia quiser abandonar a política e regressar ao Estado. Ainda assim, porque saiu com uma licença sem vencimento de longa duração numa altura em que ganhava popularidade na carreira de comentador de futebol, tem uma garantia menos forte que a de Ricardo Mourinho Félix. O antigo braço direito de Mário Centeno nas Finanças esteve cinco anos no Governo, regressou três meses ao Banco de Portugal e voltou a sair para o Banco Europeu de Investimentos. Não se sabe se pretende voltar ao regulador ou aspira a uma carreira mais ambiciosa, mas, querendo fazê-lo, o seu lugar está garantido. Ventura também pode regressar, mas não necessariamente ao Fisco (dependerá das vagas).
Estes casos são meramente exemplificativos, mas, convocando a história ou percorrendo os currículos de deputados à Assembleia da República e de eleitos autárquicos, membros de Governo e os seus gabinetes de técnicos, assessores e motoristas, as situações multiplicam-se. Se analisarmos as estatísticas das licenças sem vencimento, fornecidas ao Expresso pelo Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, o leque alarga-se mais (ver gráficos). As situações estão previstas na lei e algumas constitucionalmente protegidas.
“Temos de dar lugar a outras pessoas. O meu lugar não é aqui. A minha profissão não é esta.” A declaração da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, em novembro, explicando por que ao fim de seis anos de Governo é tempo para fazer escolhas, traça uma fronteira entre a sua profissão original e a atividade política ou outras incursões. Mas nem todos definem um limite temporal a partir do qual é preciso voltar ao lugar de partida, nem tão-pouco a lei o exige.
No Estado existem várias formas de mobilidade e de suspensão do contrato de trabalho. Quem vai para um cargo político e público (deputado, governante, assessor) tem o seu lugar de origem garantido. Já quem pede uma licença sem vencimento para ir estudar ou trabalhar no sector privado perde o lugar de origem, mas mantém o vínculo. Isto é, tem garantia de reintegração, embora possa ter de ir para outro departamento. Isto é válido para a Administração Central, onde a legislação protege os trabalhadores, e também é praticado em entidades de direito público (embora alguns reguladores não dêem licenças de saída para o privado).
Estas suspensões não têm prazo e, sejam temporárias, sejam permanentes, o chapéu de chuva do Estado mantém-se sempre aberto. Para os especialistas ouvidos pelo Expresso, têm uma razão de ser. Nos cargos políticos, ela é óbvia. “É um direito que resulta da lei. Os cidadãos têm direito à capacidade eleitoral ativa e não podem ser prejudicados por isso”, resume Paulo Veiga e Moura, advogado de direito administrativo. As saídas para o sector privado também podem ser aceitáveis. “A mobilidade [interna ou externa] é boa para o trabalhador e para o Estado. Se as pessoas vão adquirir novos conhecimentos, refrescar competências, conhecer novos métodos, é muito positivo e de incentivar”, considera Álvaro Santos Pereira, diretor na OCDE. Menos óbvia é a falta de limites, permitindo-se uma eternização do afastamento.
Para o vice-presidente da Transparência Internacional não se justifica impor limites. “Se apertamos muito a malha, pode ser contraproducente, e qualquer dia só temos pessoas do privado em funções políticas [...], com risco de usarem o cargo para ganhar poder de influência”, argumenta Nuno Cunha Rolo. “A segurança, a remuneração e a autonomia do lugar de origem dão independência e podem poupar milhões ao erário público. Em termos de corrupção, pode ter uma importância brutal”. Reconhecendo dificuldades que possam surgir na gestão de recursos humanos, porque “muitas vezes [as pessoas] nem são substituídas porque há restrições ao recrutamento”, no fim, “na verdade, quem está a pagar é sempre o Estado”.
Paulo Veiga Moura ficaria a meio caminho. “Do ponto de vista da gestão, não faz sentido que o Estado tenha de recorrer a soluções temporárias para suprir quem não voltará tão depressa”, considera. Mas separa as licenças sem vencimento dos cargos políticos. Nas primeiras, “não faz sentido que se prolonguem ad aeternum”, tal como não fazem sentido os “dirigentes sindicais, que não põem os pés no serviço durante anos”. Já a situação dos cargos políticos “é mais delicada, porque temos de ter em conta os direitos constitucionais dos eleitos, e também não vejo grande utilidade: podemos criar o perigo de afastar os melhores dos cargos políticos”.
Já Álvaro Santos Pereira dá outro salto em frente. “É muito bom que as pessoas vão trabalhar para fora, mas não pode ser ad aeternum, porque os lugares de recuo têm um custo enorme para a própria Administração Pública.” Por isso, o ex-ministro da Economia considera “sensato introduzir um limite no número de anos que as pessoas podem estar fora”, como, de resto, “acontece em várias instituições internacionais”. Estando em causa licenças sem vencimento para o sector privado, os cuidados devem ser redobrados: “É preciso garantir que não há conflito de interesses, como em tempos houve, por exemplo, entre reguladores e o sector regulado. Depois, o limite temporal deve ser cumprido mais à risca”.
Entre os rostos apontados como meramente exemplificativos pelo Expresso, Fernando Medina, André Ventura e Carlos Tavares não quiseram falar. Só Matos Rosa aprofundou a sua experiência. “Sempre tive para mim que ser deputado era uma coisa passageira. Sempre pensei voltar ao antigo emprego”, conta-nos. Mas reconhece que acabou por ficar mais que o previsto. “Se calhar, não tinha prolongado tanto a situação se não tivesse o meu lugar de recuo.” Seja como for, “achei que eticamente devia voltar [em vez de ir para o privado] e nunca ultrapassei nem fui beneficiado na carreira na AT por ser deputado”. Já Mourinho Félix, sem comentar a cedência, assumiu-se “muito honrado por ter sido convidado para representar Portugal”. “Também representa uma oportunidade para Portugal ter um vice-presidente neste momento histórico”, disse.
Para já, as regras mantêm-se e o tema não avulta nos programas eleitorais. Quem quer candidatar-se a cargos políticos pode fazê-lo, quer trabalhe no público, quer no privado. Já manter o posto de trabalho para a vida depende se trabalha no Estado, onde é obrigatório, em entidades de direito público, que têm seguido as regras gerais do Estado, ou então da generosidade do patrão.
“A segurança, a remuneração e a autonomia do lugar de origem dão independência e podem poupar milhões ao erário público. Em termos de corrupção, pode ter uma importância brutal”, diz Nuno Cunha Rolo
“Não faz sentido que as licenças sem vencimento se prolonguem ad aeternum. O caso dos cargos políticos é mais delicado e também não vejo grande utilidade. Podemos criar o perigo de afastar os melhores”, diz Paulo Veiga e Moura
“É muito bom que as pessoas vão trabalhar para fora, mas não pode ser ad aeternum, porque os lugares de recuo têm um custo enorme para a própria Administração Pública. Seria sensato introduzir um limite no número de anos que as pessoas podem estar fora”, diz Álvaro Santos Pereira
Na última década, entre 8% e 12% dos funcionários públicos saíram do seu posto de trabalho. Na sua maioria circulam dentro da Administração Central (AC — inclui direções-gerais, hospitais EPE, universidades). 2% a 5% saem para fora deste perímetro (ver próximo gráfico). No terceiro trimestre de 2021, na AC trabalhavam 546 mil pessoas: cerca de 42 mil estavam fora do posto de origem, mas dentro do Estado Central, e quase 21 mil tinham saído. Em termos líquidos, contudo, a mobilidade externa é menor: os quase 21 mil que saíram nos primeiros nove meses de 2021 foram compensados com regressos de quem estava fora e, em termos líquidos, eram 6650 os profissionais fora da AC.
Ao longo da última década, todos os anos saíram em média 18 mil funcionários públicos da Administração Central (AC). Os lugares de destino mais comuns foram as empresas públicas e a Administração Local (AL). Contudo, quando se olha para os números em termos líquidos, isto é, considerando saídas e entradas, há uma percentagem significativa a regressar ao posto de origem. Por exemplo, em termos líquidos, há mais pessoas a virem da AL para a AC do que ao contrário. Nas empresas públicas, só 27% dos funcionários acabam por ficar fora (73% regressam). A destoar deste movimento estão as licenças sem vencimento, onde só 50% regressam por ano — isto é, metade dos funcionários públicos fica fora durante bastante tempo (muitos no sector privado).
O número líquido de entradas e saídas para cargos governativos
não nos foi fornecido, dada a longevidade dos cargos.
Na última década saíram em média 1200 funcionários por ano com licença sem vencimento. Uns voltam, outros mantêm-se fora do Estado, por tempo indefinido. Quem está mais de um ano fora perde o direito ao lugar, mas mantém o vínculo ao Estado. Em termos absolutos, estes cerca de 1200 ao ano representam entre 0,2% a 0,3% da Administração Central. Já em termos líquidos, contando saídas e regressos, são cerca de 600 pessoas ao ano. Quem vai trabalhar para o privado está neste bolo, embora os números da DGAEP não discriminem os valores. Para cargos governativos saem todos os anos quase 500 pessoas, entre 0,1% a 0,2% dos funcionários públicos.
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