Economia

Construtor José Guilherme (que deu €14 milhões a Salgado) põe Novo Banco em tribunal para negociar dívida de €94 milhões

Foto: Getty Images
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Novo Banco ia vender dívida do construtor civil da Amadora, mas operação foi travada pelo Fundo de Resolução. Com relações próximas ao antigo BES, José Guilherme pediu reestruturação da dívida em 2015. Não conseguiu cumprir o negociado e avança agora para os tribunais

Construtor José Guilherme (que deu €14 milhões a Salgado) põe Novo Banco em tribunal para negociar dívida de €94 milhões

Diogo Cavaleiro

Jornalista

O construtor José Guilherme, conhecido pela liberalidade (oferta) de 14 milhões de euros a Ricardo Salgado, colocou um processo na justiça portuguesa contra o Novo Banco (NB). O montante é elevado: um pouco mais de 94 milhões de euros. Sem ter conseguido renegociar os créditos com o banco, avança agora para tribunal para tentar um alívio nos financiamentos obtidos, segundo confirmou o seu advogado ao Expresso.

A autoria desta ação judicial é não só de José da Conceição Guilherme como também da sua mulher, Beatriz da Conceição Veríssimo, sendo que só há um réu: o Novo Banco. A informação consta do portal Citius, consultado pelo Expresso, sendo que a distribuição do processo data desta terça-feira, 22 de fevereiro.

José da Conceição Guilherme é um construtor civil da Amadora, que fez negócios (e fortuna) em Angola. Era com o BES, antecessor do Novo Banco, que tinha uma relação privilegiada, ainda que também tivesse ligações com o Banco Montepio (hoje na mira da justiça). Em 2015, após a queda do BES e a crise em Angola, pediu uma renegociação ao Novo Banco. Conseguiu, mas não foi cumprida na totalidade até aqui.

“O Sr. José Guilherme e a mulher interpuseram uma ação contra o NB com vista à modificação do acordo de reestruturação e pagamento de dívida com fundamento na alteração anormal das circunstâncias em que o NB e o Sr. José Guilherme e a mulher o celebraram em 2015, depois de terem tentado desde o segundo trimestre de 2020, sem sucesso, chegar a um acordo extrajudicial para o efeito”, explicou ao Expresso o advogado do construtor, Mário Costa Pinto.

Os números à volta da dívida

Os números sobre a exposição do Novo Banco a José Guilherme variam nos vários documentos públicos (ou noticiados): era de 266 milhões de euros em junho de 2015, segundo uma auditoria feita pela EY (mas a dívida seria de cerca de metade seis meses antes, segundo relata o recente relatório da comissão de inquérito ao Novo Banco, elaborado em 2021).

Mas o próprio José Guilherme facultou números na carta que assinou a partir de Luanda a 28 de março de 2015 e dirigia à comissão parlamentar de inquérito à gestão do BES e GES: “No final de 2012 era devedor do BES, a título pessoal, de 85 milhões de euros”, dizia, mas notando que não ficava por aqui: “No final do ano de 2012, a dívida pessoal somada à dívida e responsabilidades de entidades por mim dominadas ou de terceiros, mas que avalizei ou garanti pessoalmente, era de cerca de 204 milhões de euros. Em agosto de 2014, antes da resolução, o montante em dívida era de cerca de 121 milhões de euros, tendo o remanescente sido pago, e servida a dívida à razão de cerca de 12 milhões”.

A resposta que deu por escrito então à comissão de inquérito à gestão do BES e GES por escrito – na altura, alegara motivos de saúde e o facto de estar em Angola para não prestar depoimento presencial, sendo que nesses dias o Expresso encontrou-o em Portugal; houve queixa na justiça, mas o caso foi arquivado pela justiça.

Seja como for, nessa carta do início de 2015, o construtor assumiu que precisava de uma reestruturação de dívida: tanto por compromissos que falharam do lado de parceiros, devido à resolução do BES, como pela situação económica em Angola. Além disso, esperava que o Novo Banco determinasse quanto é que efetivamente tinha de pagar. O acordo chegou, mas não foi cumprido na totalidade. Veio outra crise.

Alteração das circunstâncias

“Entre 2015 e 2021, o Sr. José Guilherme e a mulher regularizaram/libertaram-se de responsabilidades de cerca de 97 milhões de euros, entre capital e juros. O sério agravamento da situação económica e cambial em Angola, onde o Sr. José Guilherme exerce a sua atividade, e a eclosão da pandemia impõem, segundo princípios de boa fé, a adaptação do acordo às atuais circunstâncias que se vivem, de modo a que o mesmo possa continuar a ser cumprido”, explica o mandatário de José Guilherme ao Expresso.

Daí que o processo seja agora apenas de 94 milhões: “O valor da ação é o valor atual do contrato cuja modificação por alteração de circunstâncias se pede”, diz o advogado.

Não foi possível obter uma reação do Novo Banco, que colocou estes empréstimos protegidos pelo mecanismo de capital contingente, que levaram o Fundo de Resolução a colocar no banco 3,4 mil milhões de euros desde 2017 (e que poderá subir já este ano).

Venda de créditos abortada

Segundo foi noticiado pelo Jornal Económico, o banco da Lone Star esteve para vender a dívida de José Guilherme, calculada em 121 milhões de euros, no fim do ano passado, no meio dos grandes créditos integrados na carteira de malparado denominada Harvey.

António Ramalho, CEO do Novo Banco. Foto: Novo Banco

A operação concretizou-se, mas alguns créditos foram retirados, incluindo o do construtor civil. O travão foi colocado pelo Fundo de Resolução por conta do desconto que estava associado na operação: 97%, já que seria vendida por 3,9 milhões, segundo noticiou o Correio da Manhã.

Muito mais que cliente

A relação de José Guilherme com o antigo BES não era apenas de cliente, e foi o próprio a dizê-lo na referida missiva à comissão de inquérito, em 2015: “Para além da relação de banco/cliente, estabeleci, muitas vezes a pedido do BES e do GES, relações de negócio com diversas entidades, algumas do próprio GES e com entidades terceiras. Via o BES e o GES como verdadeiros parceiros de negócios e sei que era assim que estas entidades também me viam”.

Uma relação que levou o construtor da Amadora a dizer que perdera 25 milhões com a queda do BES (investira em ações e obrigações). Dizia, na altura, que era pelo menos esse o valor da perda. Anos depois, também houve envolvimentos em fundos imobiliários, que nem sempre correram bem: o Invesfundo II, que o juntou ao BES e Montepio, foi declarado insolvente.

Houve também ligações ao Montepio e ao BNI Europa, banco português com capitais angolanos, das quais a justiça suspeitou, tendo realizado buscas em 2020. A proximidade entre José Guilherme e António Tomás Correia (antigo homem-forte do grupo Montepio) é um dos pontos sob investigação, mas também os financiamentos ao filho do construtor.

Paulo Guilherme chegou a ser um dos principais titulares de unidades de participação do Banco Montepio (uma espécie de ações que não davam direito a dividendo, mas que ajudavam a capitalizar a instituição financeira), posição que conseguiu, noticiou a RTP, por via de financiamentos do Finibanco Angola, detido pelo próprio banco português.

“Amigo de longa data”

O construtor civil deu 14 milhões a Ricardo Salgado, justificando-o com o facto de dele ter recebido conselhos de investimento em Angola, sendo que foi noticiado também a entrega de 1,5 milhões a Tomás Correia. Salgado referiu-se a Guilherme, no Parlamento, como “amigo de longa data”.

Ricardo Salgado. Autor: Patrícia de Melo Moreira/AFP via Getty Images)

“O Sr. José Guilherme, em Angola, conseguiu realizar uma fortuna muito considerável e era mais credor do Banco Espírito Santo do que devedor”, foi o que afirmou no Parlamento o banqueiro que esteve à frente do BES por 22 anos – e que hoje enfrenta processos judiciais pelos últimos anos desse período. A liberalidade não foi comentada de forma mais extensa na comissão de inquérito porque, justificaram ambos, se integrava no processo judicial Monte Branco que, em 2022, continua ainda à espera de acusação ou arquivamento por parte do Ministério Público.

O advogado do construtor da Amadora assegura ao Expresso que as relações com os restantes bancos com que trabalha – em 2015 identificara o Banco Montepio, o BCP e o Banco Económica (ex-BES Angola) – estão regularizadas.

Esteve para sair do Benfica

José Guilherme é ainda um dos acionistas da SAD do Benfica, sendo que entrou no seu capital aquando da sua cotação em bolsa. No ano passado, acredita o inspetor tributário Paulo Silva na investigação Cartão Vermelho, Luís Filipe Vieira, ex-presidente da SAD, queria que o construtor vendesse a sua parcela.

O construtor ainda tem 3,73% do capital, mas tinha até chegado a acordo com o empresário José António dos Santos (acionista da Valouro) para alienar a sua posição, para que este pudesse vender depois 25% do capital a John Textor. Porém, o contrato promessa de compra e venda desta participação de José Guilherme, assinado em abril de 2021, caducou.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: dcavaleiro@expresso.impresa.pt

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