Economia

Não tributação de criptomoedas é uma lacuna da lei e o cenário pode mudar, alertam juristas

13 fevereiro 2022 17:39

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Portugal tem ganho destaque entre os investidores em criptoativos, sobretudo pela ausência de tributação de mais-valias. Uma realidade que não resulta de uma política fiscal ativa, mas sim da ausência de regulamentação. O que poderá mudar em breve

13 fevereiro 2022 17:39

Portugal tem suscitado a atenção de investidores em criptoativos, as designadas criptomoedas (dinheiro digital), sobretudo pela ausência de tributação de mais-valias neste tipo de investimento. Mas advogados e fiscalistas sinalizam que este enquadramento não resulta de uma opção, mas sim de uma lacuna legislativa no país, não havendo certezas de que se irá manter.

O entendimento do fisco sobre tributação de mais-valias geradas pelas criptomoedas data de 2016, continuando até hoje sem alterações. De uma forma geral, os rendimentos gerados pela venda ou troca de moeda virtual, quando obtidos por pessoas singulares e fora de uma atividade empresarial ou profissional, não são tributados em sede de IRS, já que não existe no Código deste imposto uma norma de incidência objetiva que permita tributá-los.

Em resposta à agência Lusa, fonte oficial do Ministério das Finanças precisou, com base no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), que quando a venda de criptomeodas constitui uma atividade empresarial ou profissional do contribuinte, existe lugar a tributação de IRS em sede de categoria B.

Porém, “em sede de Categoria G de IRS (mais-valias), a venda de criptomoedas não é atualmente tributável, considerando que não estão expressamente listadas nas operações consideradas geradoras de mais-valias, uma vez que as criptomoedas não são consideradas um câmbio ou divisa aceite como meio legal de pagamento”.

Ao nível do IVA, refere a mesma fonte oficial do Ministério das Finanças, a venda de criptomoedas “beneficia da mesma isenção de imposto aplicável à venda de divisas, por força de Acórdão do TJUE nesse sentido (Acórdão David Hedqvist de 22 de outubro de 2015 – C 264/14)”.

Um cenário que leva as advogadas Alexandra Courela e Susana Duarte, da Abreu Advogados, a admitir à Lusa que é um facto que Portugal tem vindo a ser cada vez mais procurado por investidores em criptoativos, em muito por ser apontado como um país ‘crypto-friendly’, quando na realidade “os mesmos meios que identificam Portugal como sendo um país amigo das criptomoedas pecam por não explicar que não existe um regime mais favorável, mas antes uma ausência de regulamentação legal e fiscal”. Ausência essa que, sinalizam, “acarreta necessariamente incerteza”.

Situação não pode manter-se por muito tempo

A mesma leitura faz Susana Estêvão Gonçalves, especialista em direito fiscal da CMS Rui Pena & Arnaut. Admitindo que a atual não tributação dos rendimentos de criptomoedas pode funcionar como “um atrativo para novos residentes fiscais em Portugal”, a advogada vinca que não resultando ela de um benefício fiscal ou de uma política fiscal ativa, mas antes de uma lacuna legislativa, o cenário pode a qualquer momento mudar. “N ão só possível como expectável que, em breve, estes rendimentos passem a ser tributados”, diz.

Uma mudança que as advogadas Alexandra Courela e Susana Duarte acreditam poder estar para breve. “ Esta situação de falta de regulamentação não pode manter-se por muito mais tempo”, vincaram à Lusa. E enfatizam: o legislador “tem a oportunidade” de posicionar Portugal à frente de outros países, “aproveitando e consolidando o ambiente ‘crypto-friendly’ que já existe hoje, fruto também de iniciativas, como a Web Summit e da criação de diversos ‘tech hubs’ pelo país”.

“É importante que o legislador esteja ciente que um regime que seja fortemente penalizador das criptomoedas e de outros ativos digitais pode ter como efeito a procura de outras jurisdições, com a consequente reversão do investimento feito no digital em Portugal”, referiram à Lusa, lembrando que a tecnologia da blockchain subjacente [às criptomoedas] vai muito além daquelas e tem inúmeras aplicações práticas.

Também Luís Leon, cofundador da consultora ILYA, chama a atenção para outros desafios que a nova realidade coloca e que não estão resolvidos. Ainda que concorde que a mineração possa ser considerada uma atividade – através da qual se obtém rendimento com as moedas virtuais – não existem propriamente clientes e a remuneração é auferida em ‘tokens’ através da rede (que não é um entidade jurídica).

À Lusa, Susana Estêvão Gonçalves refere que tem havido “bastante procura de clientes em temas relacionados com tributação de criptoativos”, ou seja, o interesse tem ido além das criptomoedas, sendo que, em matéria de criptoativos de outras naturezas, o enquadramento fiscal poderá ser distinto.

Ainda que também notem um maior interesse por Portugal, Alexandra Courela e Susana Duarte, observam que as pessoas que detêm investimentos em ativos digitais” mais do que um regime fiscal favorável procuram uma jurisdição em que as criptomoedas colham aceitação generalizada e em que os respetivos investidores não sejam vistos com desconfiança, nem com preconceito” o que acontece, por vezes, referem, por “as criptomoedas ainda serem associadas a práticas ilícitas, o que não corresponde à realidade”.

“Não são as criptomoedas, é a lei fiscal”

O presidente da Associação de Blockchain e Criptomoedas, Fred Antunes, considera exagerada a ideia de que Portugal atrai estrangeiros pela não tributação de criptomoedas, defendendo que o que os atrai é um regime fiscal global favorável aliado a condições como o clima.

À Lusa, Fred Antunes sinalizou que “é uma questão que é um pouco ilusória. Não são as criptomoedas, é a lei fiscal”. O presidente da associação de criptomoedas realça que “qualquer cidadão não português que venha viver para Portugal tem uma bonificação grande em termos de impostos, o país é atrativo por isso e pela gastronomia, pelo turismo, pelo clima, as criptomoedas vêm no pacote. Não há nada a pagar [pelas mais-valias] em criptomoedas porque não há lei, mas mesmo em outros tipos de geração de riqueza [os estrangeiros] pagam pouco”.

Fred Antunes acrescenta que as pessoas que detêm criptmoedas geralmente não as liquidam (ou seja, não convertem em moeda fiduciária soberana, como euros), pelo que não geram mais-valias (ou menos-valias) e também porque sabem que a qualquer momento a lei pode mudar. “Portugal é atrativo como país, eu tenho vários amigos e empresas que se mudaram para cá, mas não tem a ver com as mais-valias, são as condições turísticas do país, as condições tecnológicas, a exposição que a ‘web summit’ deu. Não é por causa das mais-valias em Bitcoin. As mais-valias são mais sensacionalismo das notícias do que realidade”, frisou.

Fred Antunes considerou que um dos fatores que faz a diferença é as empresas que operam no setor das criptmoedas poderem obter licença do Banco de Portugal e daí poderem operar em toda a União Europeia, considerando isso uma vantagem para Portugal porque muitos desses empresários preferem viver aqui do que em outros países que, considerou, têm condições menos agradáveis, desde logo de clima.

Fred Antunes disse que conhece a chamada ‘Bitcoin family’ há três anos, desde que está em Portugal, e a sua ideia de criar uma aldeia de investidores em criptomoedas, e considera que as razões da mudança são, sobretudo, por o Algarve ser mais agradável para viver do que a Holanda, de onde são originários, e por toda a menor tributação de impostos em termos geral, não necessariamente pela não tributação de mais-valias de criptomoedas.

Para o presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas, Portugal continuará a atrair empresas e residentes estrangeiros mesmo que passem a ser tributadas as mais-valias de criptomoedas e considerou que o país precisa é de ter “condições do ponto de vista de criação e geração de valor que continuem a ser atrativas mas para os portugueses”, considerando ainda que é muito difícil a relação deste setor com a Autoridade Tributária, que – acrescenta – compreende mal esta nova realidade.

A Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas tem atualmente 800 associados, maioritariamente pessoas individuais, mas também algumas empresas. Fred Antunes é também presidente executivo da ReafFevr, uma empresa sediada em Lisboa que vende saquetas virtuais com vídeos dos melhores momentos do futebol (como se fossem os tradicionais cromos de futebol, mas em vez das caras de jogadores vende momentos, como o golo de Ronaldo frente ao Mireirense.

Os pacotes desses ‘cromos’ são comprados em criptomoedas e custam entre 10 a 15 dólares os pacotes básicos e de 100 a 150 dólares os pacotes que têm dentro os momentos mais raros. Depois, como acontece os tradicionais cromos, os detentores desses vídeos podem vendê-los entre si e os mais procurados já foram vendidos a muitos milhares de dólares, disse à Lusa.

A empresa de Lisboa, onde trabalham 40 pessoas, é detida em 50% pelos funcionários e os outros 50% são fundos e indivíduos portugueses e internacionais. Atualmente, disse, a empresa tem 111 mil utilizadores ligados à sua plataforma e espera ter terminado 2021 com volume de negócios de cerca de 10 milhões de dólares (cerca de 8,8 milhões de euros à taxa de câmbio atual).

Ainda na conversa com a Lusa, Fred Antunes negou a ideia de que as criptomoedas sejam fundamentais em lavagem de dinheiro, tráfico de droga, armas e de seres humanos e financiamento ao terrorismo porque – disse – todas as transações ficam registadas na rede e são públicas e quem faz esse tipo de negócios não quer deixar registos.