10 fevereiro 2022 16:21
Foto: Getty Images
E se de repente o rótulo de uma garrafa dissesse que o vinho provoca o cancro como em qualquer maço de tabaco? É este cenário e muito mais que vai a votação no Parlamento Europeu na próxima semana e deixa o sector vitivinícola nacional em estado de alerta. A cerveja também é visada: os patrocínios a eventos desportivos são postos em causa
10 fevereiro 2022 16:21
Na Europa, a próxima semana é crítica para o futuro do vinho e da saúde: o Parlamento Europeu vota um conjunto de medidas inseridas na luta contra o cancro que preveem restrições ao consumo de álcool, vinho e cerveja incluídos.
Portugal, com outros países produtores, está neste momento a procurar minimizar “as confusões que associam diretamente o consumo de vinho ao cancro”, explica ao Expresso Ana Isabel Alves, secretária-geral da ACIBEV – Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal, sublinhando que a questão crucial está no facto de o Plano Europeu contra o Cancro não distinguir “consumo excessivo e consumo com moderação”.
Em causa está uma postura considerada “radical e fundamentalista que vai beber diretamente à fonte da Organização Mundial de Saúde para tratar todos os tipos de álcool da mesma maneira, deixar de considerar a existência de um nível seguro de consumo de álcool e, por arrasto, de vinho, quando há muitos estudos que confirmam os benefícios do seu consumo moderado”, afirma.
“E quando o objetivo não é acabar com o consumo excessivo, mas com o consumo per se, a questão principal acaba por não ser tratada porque a população em geral talvez corte o consumo, mas o foco principal, que é quem bebe de forma abusiva, acaba por ser perdido. Esses vão continuar a beber em excesso” e é nesse grupo que pode haver risco de cancro, designadamente de esófago, estômago e mama, segundo alguns estudos”, acrescenta.
A questão dos impostos
Outro ponto questionado é o aumento dos impostos sobre o álcool como forma de reduzir o consumo. “É que os nórdicos têm impostos muito altos e apresentam os padrões de consumo mais problemáticos”, comenta.
Em causa está, ainda, a possível introdução de alertas que podem ter imagens chocantes, como as dos maços de tabaco, nos rótulos de todas as bebidas alcoólicas, a exemplo do que está a ser implementado na Irlanda.
Na reação ao que está em cima da mesa, um grupo de eurodeputados do velho mundo do vinho vai propor algumas emendas ao relatório e, em especial, a substituição da expressão “no safe label”, indicadora de que qualquer tipo de consumo é de risco, incluindo um simples copo de vinho, por outra considerada “mais clara e precisa”, indicando claramente o “consumo problemático ou excessivo”.
A OIV – Organização Internacional do Vinho e da Vinha também está a movimentar-se, entre encontros com a Organização Mundial de Saúde para discutir as políticas relativas ao consumo de álcool, procurando marcar a diferença entre o vinho e as bebidas industriais ou produtos como o tabaco no que respeita ao risco do cancro, sem esquecer o trabalho feito pelo sector através das campanhas que apelam ao “consumo moderado” nem todos os estudos científicos que destacam “as virtudes” de um copo de vinho em resposta a problemas de saúde como o risco de acidentes cardiovasculares ou até de alguns tipos específicos de cancro, designadamente pulmão ou próstata.
Aliás, Pau Roca, diretor-geral da OIV, tem vindo a desdobrar-se em intervenções para repor “a legitimidade cultural do vinho como património da Europa e de um estilo de vida saudável”.
“Esta narrativa pode ter impactos brutais”
Mas se o Parlamento Europeu acabar por aprovar este plano, podemos mesmo ter garrafas de vinho rotuladas com imagens chocantes idênticas às do tabaco em Portugal? “Nestas questões de saúde, o que a Europa aprova são guiões. Os Estados têm autonomia, mas, havendo um plano europeu, há obviamente pressão. E tudo isto marca uma tendência preocupante para o sector, que pode, no limite, comprometer o futuro de regiões vitícolas como o Douro, onde o vinho é essencial à economia regional, adianta a secretária-geral da ACIBEV ao Expresso. “Esta é uma narrativa que pode ter impactos brutais no território em várias regiões europeias”, alerta.
Aliás, em carta enviada aos eurodeputados, ACIBEV e AEVP – Associação das Empresas de Vinho do Porto, pedem a sua atenção para o problema, deixando claro que o sector vitivinícola “apoia o principal objetivo da luta contra o cancro e acredita que este é um passo fundamental na resposta da União Europeia ao desafio crescente que o risco de cancro representa”.
Destaca, no entanto, que apesar de os “riscos serem inegavelmente associados ao consumo nocivo, de acordo com diversas evidências científicas, o consumo moderado de vinho, como parte integrante da dieta mediterrânica, aliado a outras atividades saudáveis, como o exercício físico regular, não parece aumentar o risco de cancro”. Assim, apoiam as emendas propostas no sentido de focar o combate no “consumo nocivo” e não na “redução do consumo per se”, adaptando a comunicação a “um consumo seguro” e alterando as referências a “avisos de saúde por “informações de consumo moderado”.
A ACIBEV e a AEVP defendem ainda a inclusão de propostas contra a proibição do patrocínio de eventos desportivos.
“Salientamos que o setor do vinho europeu e nacional é um grande impulsionador da economia e um instrumento relevante para a manutenção das comunidades rurais e ordenamento do território, por providenciar emprego, oportunidades de investimento, estabilidade económica e sustentabilidade ambiental. Os vinhos europeus provêm exclusivamente de vinhas que cobrem mais de 3,2 milhões de hectares e representam 2,5 milhões de explorações vitivinícolas na UE, que empregam mão-de-obra intensiva. Muitas comunidades existem graças à vitivinicultura e estima-se que o ciclo económico completo de produção e comercialização do vinho crie 3 milhões de empregos diretos em tempo integral, contribuindo significativamente para a economia”, sublinham.
E não esquecem uma referência às potenciais repercussões de uma subida de impostos no comércio ilícito de bebidas alcoólicas, com perda de receitas para os Estados.
“É preciso muito cuidado com as palavras”
A Viniportugal, que acaba de ver os vinhos portugueses baterem um recorde nas exportações em 2021, também está atenta ao que se passa na Europa e ao seu impacto no consumo de vinho e nas vendas do sector.
“Somos a favor da saúde e do consumo moderado de vinho, mas o que o está em causa desta vez tem por base medidas assentes em estudos pouco conclusivos e em interpretações abusivas de conclusões que se referem apenas ao consumo excessivo de álcool”, diz ao Expresso Frederico Falcão, presidente desta estrutura responsável pela promoção dos vinhos portugueses.
Sublinha, mais uma vez, “a existência de muitos estudos que apontam para os benefícios do consumo moderado de vinho na saúde e até no combate à covid”, incluindo um trabalho recente indicador de que “um copo de vinho, tal como os frutos vermelhos, ajudam doentes de Parkinson a viver mais tempo, com mais qualidade de vida”.
Preocupado “face ao crescimento da linha fundamentalista anti-álcool na Organização Mundial de Saúde e nas suas repercussões pelo mundo, Parlamento Europeu incluído”, ainda acredita que as emendas propostas possam vir a alterar o Plano Europeu de Luta Contra o Cancro no que respeita ao vinho.
Não será justo nem correcto atacar todo o sector do vinho pela existência de consumos abusivos.
Frederico Falcão, presidente da Viniportugal
“É preciso muito cuidado com as palavras usadas neste tipo de documentos”, sustenta depois de também ter enviado uma carta de sensibilização para eurodeputados em Bruxelas onde dá conta da importância do sector, designadamente na fixação de pessoas no interior, e questiona o relatório sobre “o reforço da Europa na luta contra o cancro – rumo a uma estratégia abrangente e coordenada”, por “danificar de forma gravosa a imagem e prestígio do sector vitivinícola a nível nacional e europeu”, em especial no que respeita à menção geral de que “o consumo de álcool é nocivo para a saúde”.
“Atendendo aos estudos que existem sobre esta temática, defendemos que se deve substituir “consumo de álcool” por “consumo abusivo de álcool”, por ser esta a causa dos problemas de saúde. Não o consumo per se, antes o consumo abusivo. Não será justo nem correcto atacar todo um sector do vinho pela existência de consumos abusivos”, defende.
Manifesta, também, reservas à incorporação nas embalagens de vinho de advertências sobre o impacto do seu consumo na saúde. “Esta medida, para além de denegrir todo o sector e a sua imagem, seria muito injusta por não tomar em consideração as centenas de estudos sobre os efeitos do consumo moderado de vinho na saúde”, acrescenta
O primeiro passo dado na Irlanda
O primeiro passo neste caminho que coloca o vinho num patamar próximo do tabaco foi dado na Irlanda, com a aprovação de legislação específica em 2018. Ao Expresso, Ana Isabel Alves, secretária-geral da ACIBEV – Associação de Vinhos e Espirituosa de Portugal falou de imediato de “terrorismo no consumo” e justificou: “tudo tem por base uma informação incompleta, errada e não fundamentada”.
Na altura, Portugal foi uma das poucas vozes na Europa a contestar a nova legislação, já preocupado com o facto de a posição irlandesa marcar uma posição que confundia o combate ao alcoolismo com o consumo de vinho com moderação. E, desde logo, o sector antecipou de um cenário “radical e contagiante” que poderia levar à introdução destas medidas em países onde as exportações dos vinhos portugueses são significativas.

Foto: Getty Images
A ameaça também pesa sobre a cerveja
A cerveja também está na mira do Parlamento Europeu no âmbito deste pacote de medidas de combate ao cancro que quer, por exemplo, acabar com os patrocínios de cervejeiras a eventos desportivos. Se a medida passar pode comprometer grandes competições desportivas em várias modalidades, incluindo a Liga dos Campeões (futebol).
Em Portugal, a ligação da cerveja ao desporto também é habitual e abrange as seleções nacionais da Federação Portuguesa de Futebol, que tem na cerveja o seu patrocinador mais antigo, a par de clubes como o Benfica ou o Braga.
O Expresso tentou obter uma reação das principais marcas nacionais e da Associação Cervejeiros de Portugal, mas o sector não esteve, até ao momento, disponível para falar sobre o tema.