Economia

Comissão Europeia quer “pintar” o gás e a energia nuclear de verde. Mas pode? Especialistas contestam

Foto: Getty Images
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Gás natural e energia nuclear tratados como “verdes”? As opiniões contrárias multiplicam-se, desde investidores, nações, até cientistas e ambientalistas

Uma proposta da Comissão Europeia para que a energia nuclear e a eletricidade gerada a partir do gás natural sejam consideradas verdes está a incendiar uma discussão um pouco por toda a Europa. Os especialistas do ambiente e das finanças sustentáveis rejeitam a proposta, sendo que são ainda mais duros com o gás natural. Vários Estados membros mostram-se especialmente às avessas com a inclusão do nuclear no universo verde. Conheça as razões. 

A Taxonomia Europeia contém linhas orientadoras que permitem classificar as atividades económicas, a nível europeu, como contribuindo (ou não) para os objetivos ambientais da União Europeia, partindo de critérios científicos. Desta forma, acaba por guiar as intenções de investimento. O gás natural e a energia nuclear não se encaixavam nesta família até agora, mas está em cima da mesa uma proposta nesse mesmo sentido.

“Precisamos de mais renováveis. São mais baratas, neutras em carbono e endógenas. Precisamos também de uma fonte estável, a energia nuclear, e durante a transição, o gás”, afirma um porta-voz da Comissão Europeia, em declarações ao Expresso

O mesmo responsável esclarece que a regulação da taxonomia distingue três tipos de atividades: as renováveis ou de baixo-carbono, as transitórias, e as que lhes são facilitadoras (enabling). É no segundo grupo, das transitórias, que a Comissão Europeia propõe incluir o gás e a energia nuclear. Um grupo onde cabem as atividades que não tenham alternativas possíveis de baixo-carbono, tanto do ponto de vista tecnológico como económico, à escala necessária e, neste sentido, terão um “papel importante” na transição para uma economia neutra em carbono, explica  a mesma fonte.  

Precisamos de mais renováveis. São mais baratas, neutras em carbono e endógenas. Precisamos também de uma fonte estável, a energia nuclear, e durante a transição, o gás.

Comissão Europeia

Mas será mesmo assim? A Plataforma sobre Finanças Sustentáveis, um grupo consultivo ao qual a Comissão Europeia pediu um parecer, entregue no passado dia 21 de janeiro, questiona a legalidade da inclusão do gás fóssil e da energia nuclear como ambientalmente sustentáveis. A Lei Europeia para o Clima tornou vinculativo o objetivo de ser alcançada a neutralidade climática na Europa até 2050 e uma meta de redução de emissões de gases de efeito de estufa de, pelo menos 55%, até 2030, em relação a 1990. 

Gás e nuclear verdes: um caso de greenwashing?

As opiniões divergem, mas o conceito de greenwashing é admitido pelos especialistas como sendo aplicável à proposta da Comissão Europeia de designar o gás natural e a energia nuclear como “verdes”. O termo em inglês refere-se à intenção de fazer passar algo por sustentável, quando na verdade não o é. 

Rodrigo Tavares, professor do mestrado em Finanças Sustentáveis da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), divide-se: “Sim, [greenwashing] no caso do gás natural e não, no caso da energia nuclear”. Segue a linha de um dos principais grupos de investidores sustentáveis, o Institutional Investors Group on Climate Change (IIGCC), que criticou a inclusão do gás natural, mas não da energia nuclear.

A favor do nuclear, afirma que “a avaliação da sustentabilidade é mais complexa do que aparenta ser”, e mesmo as energias renováveis têm os seus problemas. As turbinas eólicas têm efeitos nefastos em termos de biodiversidade e os painéis solares são manufaturados com químicos tóxicos, como o chumbo ou o cádmio, e não são recicláveis. Até os carros elétricos, se comparados aos tradicionais, exigem mais minerais finitos, e as agências de rating acabam por dar uma nota baixa à fabricante Tesla no que toca à sustentabilidade. 

“Desde que os países apresentem planos sérios para tratar os resíduos radioativos, não vejo porque a energia nuclear não possa ser incluída na taxonomia”, diz Rodrigo Tavares. A única alteração que considera necessária é antecipar a data de tratamento dos resíduos, que no seu entender não deve ter como limite 2050.  

Já Júlia Seixas, professora de Energia e Alterações Climáticas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, apesar de reconhecer a neutralidade carbónica desta fonte,  afirma que “o nuclear apresenta problemas que têm a ver com outros objetivos ambientais”, nomeadamente o ainda não resolvido dilema do tratamento dos resíduos. Depois, há a magnitude do risco, presente em desastres como Chernobyl ou Fukushima. Tendo isto em conta, a professora univesitária não concorda que o nuclear entre na taxonomia. 

No caso do gás, retorna Rodrigo Tavares, “não é tecnicamente possível afirmar que é uma energia limpa”. Ambientalmente, o metano tem um potencial de aquecimento global cerca de 30 vezes superior ao dióxido de carbono (CO2) e “o gás natural é metano”, alerta Júlia Seixas. Na base deste argumento, a professora diz discordar “totalmente” de que o gás natural seja considerado um investimento verde. Mas este não era o combustível fóssil menos prejudicial? Júlia Seixas concede que, em relação às centrais a carvão, as de gás natural têm uma eficiência significativamente maior. Mas as vantagens não passam daqui, diz. Além das emissões de CO2, na fase de exploração emite muito metano para a atmosfera. 

A questão mais crucial em termos de ação climática é que estão a pôr em causa os novos investimentos em renováveis

Francisco Ferreira, presidente da Zero

Mas há mais argumentos contra. É que, nesta fonte de energia, “qualquer que seja o investimento é de muito longo prazo”, e coloca-o como uma solução para os próximos 30 a 40 anos – isto é, ultrapassando o prazo estabelecido para a neutralidade carbónica, quando o gás já não devia ter lugar. O mesmo para o nuclear – os investimentos são longos e custosos. O projeto da central nuclear Flamanville 3, da elétrica francesa EDF, por exemplo, já está mais de uma década atrasado – tem agora previsto o início da atividade para 2023 – e os custos são estimados nos 12,7 mil milhões de euros. 

Foto: EDF

“A questão mais crucial em termos de ação climática é que estão a pôr em causa os novos investimentos em renováveis”, afirma Francisco Ferreira. O presidente da associação ambientalista Zero acredita que está na hora de assegurar que as renováveis tiram o protagonismo a este combustível fóssil, que para já, reconhece, tem um papel essencial. Mas “o gás natural que temos hoje chega”, não são necessários mais investimentos neste setor. Sim, os preços de gás natural têm disparado por escassez na oferta, “mas uma coisa é a capacidade, outra é a utilização”, defende. Ou seja, mesmo que se construíssem mais centrais, não se iriam resolver os problemas de fornecimento, que são sobretudo de índole política, e os preços, acredita, não baixariam em função desses novos investimentos. 

Então, existe alguma forma de beneficiar o gás natural ou o nuclear que seja aceitável? Rodrigo Tavares acredita que, no caso do gás, há acordo entre a maioria dos especialistas à volta do valor limite de 100g de emissões de CO2 por quilowatt hora (kWh), ou seja, se uma central alimentada a gás não ultrapassar este patamar de emissões, a sua inclusão na taxonomia não deve ser contestada. Este valor é cerca de um terço da proposta atual da Comissão Europeia. Júlia Seixas admite apenas que, se se chegar à conclusão de que é necessário estabilizar o sistema elétrico, se invista apenas no prolongamento de vida de centrais já existentes – nunca em centrais novas. Francisco Ferreira é perentório: “Qualquer favorecimento a investimentos que não têm sentido, económica e ambientalmente, do ponto de vista da descarbonização, não devem ter sequer um bónus parcial”.  

Por sua vez, os peritos consultados pela Comissão aconselham a criação de uma taxonomia alargada para incluir atividades que não são sustentáveis, mas que geram menos emissões – uma zona âmbar –, categoria que incluiria qualquer sistema de produção de energia cujas emissões diretas sejam superiores a 100 g de CO2 por kWh mas não excedam 270 g de CO2 por kWh, uma vez que seriam consideradas como não causando danos significativos para o ambiente, indica o comunicado, citado pela Lusa.

Do greenwashing à green politics

No que diz respeito à taxonomia, além das questões ambientais, discutem-se questões políticas. A matriz energética dos vários países da UE é muito distinta, e portanto também o são os respetivos interesses. Júlia Seixas e Francisco Ferreira sublinham a contradição desta iniciativa com os compromissos assumidos em Glasgow, onde a Europa se comprometeu a, juntamente com outros 104 países, reduzir as emissões de metano. 

Rodrigo Tavares, sobretudo no caso do gás natural, atribui a tentativa de classificação como verde a pressões políticas. “No caso da energia nuclear, a pressão também existiu, mas é uma energia que não emite carbono”, aponta. Júlia Seixas relembra que o nuclear sempre foi uma bandeira da França, e o gás natural é uma fonte especialmente relevante na Alemanha.

Portugal não se revê na proposta da Comissão Europeia que pretende classificar tecnologias associadas a energia nuclear e ao gás natural como verdes

Ministério do Ambiente

Entretanto, já alguns Estados membros se mostraram contra a proposta da Comissão. A Alemanha opõe-se sobretudo à questão nuclear, revelando-se no entanto favorável aos investimentos em gás natural – numa altura em que o Nord Stream 2, um gasoduto que liga a Rússia à Alemanha, e que deverá tornar-se uma nova e importante “autoestrada” para a entrada do combustível na Europa, está à espera de licença para começar a operar. Já Viena ameaçou tomar medidas legais contra a proposta. À Áustria juntaram-se Dinamarca, Espanha e Luxemburgo, na redação de uma missiva onde se mostravam particularmente preocupados com a questão do nuclear. 

Foto: Nord Stream 2

Neste canto da Europa, “Portugal não se revê na proposta da Comissão Europeia que pretende classificar tecnologias associadas a energia nuclear e ao gás natural como verdes”, resume o Ministério do Ambiente, em declarações oa Expresso. Relativamente ao nuclear “não é sustentável, não é seguro e é caro”, avança o Governo. Sobre o gás, o Governo questiona os requisitos de emissões de gases, assim como os prazos de licenciamento e obrigação de incorporação de gases renováveis estabelecidos. Fala ainda de “uma excessiva dependência desta fonte de energia”, considerando que o futuro do gás natural passa pela sua progressiva substituição por hidrogénio e demais gases renováveis.

Ainda assim, as contas não são fáceis. Numa primeira fase, a proposta só pode ser bloqueada com o “não” de 20 Estados Membros. “É muito difícil” ter tanta oposição, estima a associação Zero. No entanto, quando passar pelo escrutínio do Parlamento Europeu, numa segunda fase, há mais possibilidades de haver uma maioria que bloqueie a decisão, afirma. 

Investidores querem clareza. E gás de fora

A taxonomia é importante para os investidores na medida em que ajuda a perceber se determinado investimento é sustentável ou não, e isso tem implicações em algo tão simples como o valor dos juros caso o investidor peça um empréstimo para avançar com o negócio. Investimentos verdes tendem a exigir juros mais baixos que aqueles que não encaixem nesta categoria. 

Para Rodrigo Tavares, os investidores estarão prontos a adaptar-se a qualquer que seja o desfecho da taxonomia, mas… “o pior sinal neste processo veio, de facto, da União Europeia. A questão do nuclear e gás natural não foi amplamente discutida, a Comissão mostrou-se vulnerável aos interesses particulares de alguns países, e os trâmites de aprovação foram dissimulados e pouco criteriosos”. Aliás, o já referido grupo de investidores IIGCC, que no seu conjunto gerem 50 biliões de euros em ativos e incluem nomes como a BlackRock e a Vanguard, aconselhou mesmo a União Europeia a não rotular os investimentos em gás natural como sustentáveis, defendendo que essa decisão iria enfraquecer a posição de liderança global no que toca às finanças verdes, avançou a Reuters

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