Exclusivo

Economia

Wall Street Bets: o fenómeno que está a agitar as bolsas dos EUA, visto de Portugal

Wall Street Bets: o fenómeno que está a agitar as bolsas dos EUA, visto de Portugal
Roberto Junior / Unsplash

As ações da norte-americana GameStop dispararam e provocaram perdas substanciais aos fundos que apostavam na sua queda. O professor universitário Afonso Eça, o gestor de capital de risco Stephan Morais e a deputada Mariana Mortágua falam ao Expresso sobre o fenómeno

Wall Street Bets: o fenómeno que está a agitar as bolsas dos EUA, visto de Portugal

Miguel Prado

Editor de Economia

Na fórum Wall Street Bets na plataforma Reddit vão-se sucedendo os apelos à resistência, para continuar a apostar em empresas como a retalhista de videojogos GameStop (identificada em bolsa com a sigla GME) e a rede de cinemas AMC. “Não vendam AMC ou GME se ficarem bloqueadas na vossa plataforma de negociação. Se venderem o preço afunda-se. Se aguentarem o preço subirá na reabertura do mercado com os novos compradores. Todos concordámos em bombar na abertura do mercado. Copiem, colem, façam spam e espalhem a mensagem”, escrevia um dos utilizadores do grupo esta quinta-feira.

O fenómeno levou a GameStop a disparar em bolsa mais de 1700% desde o início do mês. Se nos primeiros dias de janeiro as suas ações eram negociadas a menos de 20 dólares, esta quarta-feira fecharam nos 347 dólares, mas as ordens colocadas durante a noite chegaram a ultrapassar os 500 dólares por ação, num fenómeno onde o céu parece ser (ou não ser) o limite. O que está a acontecer parece ter ultrapassado todo e qualquer limite da racionalidade no que respeita ao real valor da GameStop.

“Os Wall Street Bets começaram com alguma malta sofisticada. Mas conseguiram alargar o grupo a um conjunto de fiéis. Parece um culto”, observa Afonso Eça, professor convidado de Finanças na Nova SBE e administrador e acionista da Raize, uma pequena empresa portuguesa cotada em bolsa que se dedica à angariação de investidores e financiadores para os mais diversos negócios.

Afonso Eça tem, por estes dias, seguido com atenção o fenómeno GameStop, que já alastrou à AMC e poderá em breve chegar a outras empresas norte-americanas. O denominador comum: serem empresas nas quais os hedge funds tomaram posições curtas para tentarem lucrar com a desvalorização da empresa. Essas operações, denominadas short selling (vendas a descoberto em português), assentam no seguinte: o fundo pede aos bancos ações emprestadas de uma dada empresa e vende-as imediatamente (mesmo sem ser o seu dono); depois espera que essa empresa desvalorize em bolsa para comprar o mesmo volume de ações quando elas estiverem baratas e entregá-las aos bancos, fechando a operação.

O problema para os hedge funds é quando as empresas em que apostaram para fazer short selling valorizam em bolsa. E foi justamente isso que alimentou uma horda de ativistas e membros do grupo Wall Street Bets, na plataforma Reddit, que decidiram declarar guerra aos fundos de Wall Street que apostavam na queda da GameStop e de outras empresas cotadas em bolsa.

“O problema está nos instrumentos financeiros a que o retalho [pequenos investidores particulares] está a ter fácil acesso, através de plataformas de corretagem que lhes dão acesso a ações e produtos financeiros complexos que permitem investir com imensa alavancagem”, descreve Afonso Eça. O administrador e acionista da Raize lembra que plataformas como a Robinhood, Ameritrade e Interactive Brokers permitem que qualquer cidadão aceda facilmente à transação de ações e derivados de empresas cotadas com comissões muito mais baixas do que a banca tradicional.

A “parte interessante” do fenómeno GameStop e AMC, diz ainda Afonso Eça, é que a maior parte das ordens dos investidores do Wall Street Bets são opções e não as ações propriamente ditas. “Estas opções estão a subir muito não tanto porque os investidores compram efetivamente as ações mas porque ao comprarem opções obrigam os bancos a comprar as ações subjacentes para poderem ser entregues no prazo determinado”, explica.

E por isso mesmo se gera um fenómeno sem fim à vista, que não terminará necessariamente quando os hedge funds fecharem todas as suas posições e saírem da GameStop, mas sim quando os investidores do retalho deixarem de comprar novas opções com novos prazos sucessivamente. “Se as pessoas tirarem o dinheiro de cima da mesa teremos o reverso, mas enquanto houver números para contar e opções para comprar isto pode ir para cima”, aponta Afonso Eça.

“É o mercado a funcionar”

Stephan Morais, fundador da gestora de capital de risco Indico Capital Partners, tem uma perspetiva relativamente pragmática sobre este fenómeno. “Só me preocupa se tiver sido feito algo de ilegal. Os hedge funds têm vindo a usar estas táticas há décadas, agora são eles a sofrer as consequências”, começa por observar o gestor.

“A única parte preocupante deste movimento é a total falta de ligação entre o valor das empresas em causa e a sua avaliação no mercado dados estes movimentos. Também há aqui um efeito perverso e que não foi antecipado pelas autoridades que foi o facto de as pessoas receberem 'cheques covid' do governo americano e terem usado esse dinheiro para especular na bolsa. Mas, de resto, é o mercado a funcionar e as autoridades e reguladores têm que avaliar se há algo de ilegal ou se em algum momento a estabilidade do mercado está em causa. Nesse caso haveria que suspender a transação desses activos ou proibir durante algum tempo o short selling”, afirma Stephan Morais ao Expresso.

Afonso Eça diz ter dúvidas de que o supervisor da bolsa americana, a SEC (Securities and Exchange Commission), possa fazer algo, porque não está a haver abuso de informação privilegiada. “Não há um grupo de pessoas com informação relevante que outras não tenham. Não estão a fazer nada de ilegal. Há, sim, uma descolagem enorme entre o preço das ações e o seu valor real”, aponta o administrador da Raize.

Ainda assim, Afonso Eça admite que a SEC possa vir a tomar medidas para dificultar o acesso direto do cidadão comum à negociação de ações e produtos derivados.

Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda.
Ana Baião

Para a deputada Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, o que sucedeu com a GameStop “mostra o carácter estratosférico dos mercados bolsistas”. Mariana Mortágua nota que a bolsa “é mais um mecanismo de especulação do que uma forma de financiamento das empresas”, sendo que o caso da GameStop “mostra de forma clara que tipo de forças estão por trás dos mercados bolsistas”.

“É irónico que os hedge funds que são especialistas em trazer empresas ao charco agora peçam regulação e intervenção das autoridades, quando são alvo de um movimento especulativo”, frisa a deputada.

Mas Mariana Mortágua aponta, por outro lado, para a necessidade de fiscalizar as plataformas que, no quadro de uma “financeirização das economias”, vêm alimentando a ideia de que os indivíduos são investidores, promovendo uma “gamificação do investimento”. “O investimento torna-se divertido e aditivo. Estas plataformas que facilitam o acesso das pessoas aos mercados financeiros são uma nova tendência que não está regulada”, alerta Mariana Mortágua.

Afonso Eça reconhece que o que está a suceder nos Estados Unidos com a valorização inesperada da GameStop tem muito mais de aposta do que de investimento. Mariana Mortágua observa que a percentagem de cidadãos que se dedicam a passar o dia a transacionar ações e que de facto ganham com isso é muito diminuta. “Só 2% dos daytraders [quem aposta nas variações diárias das bolsas] conseguem fazer lucros de forma sistemática”, aponta a deputada.

Pode haver um contágio das bolsas? Pode acontecer em Portugal?

Esta quarta-feira a bolsa norte-americana já sofreu um deslize provocado em boa medida pela repercussão da GameStop. Isto porque alguns investidores institucionais que apostaram no short selling tiveram de fechar as suas posições, vendo-se obrigados a vender parte das suas participações noutras empresas para cobrir o custo inesperado.

Mas Afonso Eça não acredita que o que está a acontecer na GameStop possa contagiar de forma relevante todo o sistema financeiro. “Há cantinhos do mercado que estão a ser afetados. Globalmente são fenómenos interessantes, com muitas pessoas, mas são um cantinho do mercado. Não vai haver um efeito sistémico de instituições financeiras em perigo, tirando um ou outro hedge fund”, perspetiva o administrador e acionista da Raize.

E em Portugal poderia acontecer? Afonso Eça nota que até “é mais fácil acontecer cá”, porque as ações portuguesas têm menos liquidez, pelo que qualquer movimento popular de massas poderia fazer catapultar a cotação das empresas nacionais visadas. Contudo, dificilmente tal acontecerá se não houver uma ofensiva de hedge funds a apostar na desvalorização de empresas portuguesas; e neste momento não há qualquer caso relevante de short selling na nossa bolsa.

O mercado de capitais português é hoje bem menos atrativo do que já foi no passado. “A bolsa portuguesa tem uma história super-rica. Nas décadas de 1980 e 1990 era super-activa, mas foi afetada pela crise das dot.com [empresas tecnológicas] nos anos 2000. Depois veio a integração com a Euronext, que tirou o centro de decisão de Lisboa. E a crise financeira e o que depois aconteceu a empresas como a PT e o BES também não ajudou”, contextualiza o professor convidado da NovaSBE.

“O português não é avesso ao risco, é avesso à perda”

Outra observação que Afonso Eça deixou ao Expresso é que pela experiência recolhida na Raize, que já captou mais de 65 mil investidores, “o português não é avesso ao risco, é avesso à perda”. Isto é, segundo o gestor, os portugueses aceitam e têm interesse em investir se perceberem a recompensa que podem obter.

A experiência da Raize permitiu a Afonso Eça perceber que existe disponibilidade dos cidadãos para aplicar o seu dinheiro em produtos com risco. Os investimentos na plataforma Raize têm uma taxa de juro anual bruta de 6,5%, mas não têm o capital garantido. Segundo Afonso Eça a taxa de perdas na Raize tem sido baixa, da ordem dos 0,5%.

“O público português é bastante interessado, quer perceber no que está a investir. Não sou tão pessimista como alguns quanto à questão da falta de literacia financeira”, afirma o mesmo responsável.

Mas olhando para o que está a acontecer do outro lado do Atlântico, Afonso Eça não tem grandes dúvidas de que vai ter de haver uma reflexão. “Nos Estados Unidos é inevitável que vá haver uma reflexão profunda sobre os produtos financeiros a que o investidor não qualificado tem acesso”, reitera.

Para Mariana Mortágua, o tema é merecedor de reflexão sobre a regulação da ligação entre as plataformas digitais e o mercado financeiro. “A longo prazo isto não resolve os problemas de desigualdade na distribuição de rendimentos. Temos de ter muito cuidado a analisar este fenómeno do ativismo e perceber as suas consequências”, avalia a deputada.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mprado@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate