A metade livre do dia. Surf e um ´sarguito' perto de casa
João Carlos, Joaquim Carapeta, Nuno Domingues e Hugo Domingues: desta vez a pesca teve ser num local mais perto
NUNO BOTELHO
Enquanto alguns portugueses se concentraram nas compras que faltavam, outros disputaram ondas e lugares de estacionamento. Durante dois fins de semana, os dias têm duas metades distintas. Estas são as histórias de quem passou a manhã à beira mar
Em qualquer outra manhã de um sábado normal, João Carlos, Joaquim Carapeta, Nuno Domingos e Hugo Domingos teriam ido a pescar para Setúbal. “Levávamos um grelhador e assávamos umas bifanas e ficávamos o dia todo”, explica João Carlos. Só que a normalidade deste sábado termina às 13h, por decisão governamental que pretende conter a pandemia. “E por isso viemos para um sítio mais perto”, acrescenta.
O grupo é de Loures e acordou às 5h, decidido a manter o hábito de todos os fins-de-semana. O “sítio mais perto” é a praia de Caxias, o forte de São Bruno à esquerda a medir meças de ex-libris da “Linha de Cascais” ao Forte da Giribita à direita – mas de peixe nada. Ou melhor, quase nada. Um dos membros do grupo “pescou um sarguito”.
Se tivessem ido para Setúbal, a pescaria seria outra. Para o grupo, não faz sentido aplicar restrições a uma atividade praticada ao ar livre que, por questões de segurança, já exige que cada pescador esteja a cinco metros de distância do outro.
“Chateado com isto. É só Covid, é só Covid, é só Covid. Pusessem mais autocarros e comboios para as pessoas não andarem umas em cima das outras e seria bem melhor”, atira João Carlos. “Com o confinamento, as pessoas ficam ainda mais fechadas, o que aumenta o contágio. É o que se costuma chamar de ar irrespirável”, analisa Joaquim Carapeta.
Paulo Marques e João Pedro Freire foram surfar para Caxias porque a Praia de Carcavelos estava cheia
NUNO BOTELHO
Surfar sobre um campo de abóboras
A Old School Surf School nunca duvidou do efeito contagiante do mar. E antes da pandemia era costume encher a carrinha de miúdos e graúdos desejosos de aprenderem os rudimentos da bela arte de apanhar destruir ondas. As aulas continuaram, mas a procura diminuiu a partir do momento em que as medidas de contingência passaram a impedir a tomada de alunos na carrinha. Os turistas que também costumavam inscrever-se desapareceram – e John, um canadiano, é a exceção em muitas semanas.
O destino original era Carcavelos, mas “quando chegámos lá, a praia estava cheia. Toda a gente pensou o mesmo”, explica Paulo Marques, um dos responsáveis pela escola de surf. A praia de Caxias foi a alternativa possível. O que implica alguns procedimentos. A começar por um pedido ao grupo de pescadores para que cedam espaço para que pranchas e chumbadas se façam à agua sem atropelos.
“Os pescadores vão ter de se afastar depois de pormos as bandeiras da escola na praia. Temos licença da capitania. Geralmente é uma coisa pacífica”.
O resto da conversa é feita em contrarrelógio. Sofia Madeira, que também trabalha com a escola, explica a pressa: “Temos de aproveitar agora para surfar, porque às 13h transformamo-nos em abóboras”. E lá foram rumo ao que só o mar dá.
Quando o primeiro café não chega
O nevoeiro teima em não levantar, mas José Teixeira está convicto que não foi o mau tempo que afastou os passantes do bar-restaurante Baía Beach Clube, bem ao lado do Forte de São Bruno, Caxias. “Ainda nem servi um café”, diz sem deixar passar pela máscara um sinal de lamento. À veterania dos serviços de restauração, junta a veterania da restauração em plena pandemia. “Vamos ter um brunch, porque não podemos ter almoço”, explica numa alusão ao recolhimento que impede os consumidores de irem buscar comida aos restaurantes a partir das 13h durante este fim de semana e também no seguinte.
Como noutros restaurantes que tinham no fim de semana o período de maior faturação, a expectativa é que haja quem faça encomendas suficientes para entrega em casa que ajudem a compensar as perdas. José Teixeira olha para o paredão que segue em direção à Cruz Quebrada e garante que há menos pessoas a passear para o que é costume num sábado de manhã. “Estou convencido que amanhã de manhã vai ser melhor, pois as pessoas já terão interiorizado as regras e sabem o que devem fazer”, diz.
A adaptação não é propriamente novidade – mas sim a característica maior de quem não desiste da normalidade possível. “Temos de inventar, mas inventar não chega. Continuamos a pagar os mesmos impostos, rendas e salários que pagávamos antes”.
Em plena pandemia, José Teixeira e Katherine Reis, os dois sócios, tentam tirar partido de um “novo conceito” que levou a trocar o nome de Baía dos Golfinhos por Baía Beach Clube. Em vez de atividades confinadas, a aposta passou a recair em atividades no exterior, com o sushi e os “sunsets” da moda, cocktails, música de DJ e até rodas de samba. Tudo o que estes dois fins-de-semana não vão poder ter por causa da covid-19.
José Teixeira e Katherine Reis, sócios do Baía Bech Club
NUNO BOTELHO
Gastar energia antes do fecho
Catarina Figueiredo e Nuno Cruz não mudaram a rotina das manhãs de fim-de-semana - a ida ao paredão de Caxias costuma ser feita de manhã. “Este é o nosso local de eleição”, refere Nuno Cruz. Pela mão levam três crianças. E são elas as beneficiárias diretas de um plano traçado que tem por objetivo primordial “gastar energia”.
“Estas medidas fazem sentido, porque as pessoas andam a prevaricar. O povo português só com regras instituídas é que vai lá”, refere Catarina Figueiredo.
Em contrapartida, Nuno Cruz admite que teve maiores constrangimentos neste fins de semana que nos meses anteriores. “Faço jardinagem. É algo que tem tido grande afluência. Mas eu posso vir cá para fora e trabalho sozinho; o problema são as pessoas que têm de ficar fechadas. Algumas dão em malucas”, refere para, depois de um compasso de espera, dar voz a uma ideia de última hora: “Não nos querem emprestar as vossas carteiras de jornalistas para podermos sair de casa à tarde?”. O encontro fortuito acaba com sorrisos de todos os interlocutores.
Catarina Figueiredo e Nuno Cruz costumam aproveitar as manhãs do fim-de-semanapara passear ao ar livre
NUNO BOTELHO
Lidl e Continente de Sasoeiros tinham filas à entrada
NUNO BOTELHO
Uma fila que vai do Lidl ao Continente
As máscaras não permitem dissipar a dúvida, mas é difícil acreditar que haja alguém a sorrir na fila do Continente de Sassoeiros, concelho de Cascais. Entre os presentes, há quem admita que só está ali àquela hora por causa do recolhimento decretado para depois das 13h00.
Lá dentro não se vê grande azáfama, o que leva a crer que a fila se deve apenas às dimensões do supermercado que não será propriamente a maior superfície comercial da Sonae. Pouco depois, um outro transeunte lá aceita dar umas palavras a comunicação social. É italiano, estuda no pólo da Universidade Nova de Lisboa em Carcavelos desde setembro. A covid-19 não o demoveu da mudança. Está em exames. E tem pressa para fazer compras. Nem tempo tem para dizer o nome. A fila tinha desaparecido de súbito.
Pelo contrário, no Lidl do mesmo bairro, a fila persiste. “É assim desde que reduziram o número de pessoas que lá trabalham”, garante uma senhoras à espera de entrar. Uma outra que está imediatamente atrás diz que já fez a maioria das compras durante a semana e que só lá vai nesta metade de dia de relativa normalidade pandémica para comprar “os frescos e o peixe”.
À saída do supermercado há alguém que não se importa de alimentar a curiosidade alheia, já de sacos cheios de compras, enquanto a chuva miudinha apressa a conversa: “Concordo com estas medidas, e acho que deveriam ser mais severas. Quanto mais rapidamente resolvermos isto, menos restrições teremos depois”, refere Edson da Silva, cidadão brasileiro que vive na Suíça e está de visita a Portugal, mesmo sabendo que terá de passar metade do dia fechado em casa.
Hugo Borges estima que o restaurante onde trabalha perdeu 90% da faturação com as medidas de confinamento
NUNO BOTELHO
Abrir às segundas-feiras para compensar os fins de semana
“Este dia é uma experiência”, diz Hugo Borges, responsável pelas operações do restaurante Brasa de Sassoeiros. Antes da pandemia, o restaurante servia 700 refeições num fim de semana – e às vezes chegava às 250 num único almoço de domingo.
Num único mês, o estabelecimento pode ter custos superiores a 80 mil euros. E à semelhança de outros responsáveis por restaurantes, esse número continua a figurar como uma meta que, apesar da incógnita, tem de ser alcançada. Nas contas dos gestores do restaurante de Sassoeiros, a pandemia redundou numa perda de 90% da faturação, mas todos os 18 empregados continuam a trabalhar.
“Mantemos o peixe e a carne frescos, só não podemos ter tanta variedade”, refere Hugo Borges.
No que toca ao primeiro sábado de recolhimento, regista um primeiro indício positivo: “Não é normal tanta encomenda a esta hora do dia”.
A Brasa de Sassoeiros não recorre às plataformas de entrega de comida ao domicílio e leva a comida aos clientes com os seus recursos próprios. “Vamos ver o que é acontece depois das 13h00”, refere Hugo Borges. Será que correu bem?
António Banazol optou por ir ao restaurante depois depois de deparar com uma fila no supermercado
NUNO BOTELHO
A desculpa do primeiro-ministro que não desculpa o resto
Depois de uma carreira como piloto da aviação comercial, António Banazol guarda uma pequena pena de nunca ter visitado a China, e demonstra grande irritação com o facto de o terem obrigado a ir buscar comida ao restaurante, depois de ter deparado com uma fila no Lidl.
“Tive de me adaptar a esta solução extrema que foi feita em cima do joelho. O próprio primeiro-ministro pediu desculpa por ter passado a mensagem errada. A verdade é que já fez vários erros e o pessoal continua a bater palmas”, refere enquanto espera que lhe entreguem o saco com as refeições que encomendou para comer em casa.
Com 70 anos de idade, admite que está no grupo de risco da Covid-19, mas não deixa de ir para os espaços públicos sempre que precisa. “É muito difícil as pessoas terem medo enquanto isto não lhes toca. Inconscientemente, também eu desvalorizo…”, justifica.
Da profilaxia à política, vai apenas um passo. Depois de dissertar sobre a eficiência das medidas de combate à pandemia, aponta o dedo a quem quer mais direitos que deveres. “Sou contra ditaduras e regimes totalitários, mas a verdade é que têm mais sucesso a contra a Covid-19. Nas democracias, precisamos de mais autoridade. O que acontece é que eu digo isto e as pessoas vão logo comparar autoridade com repressão”, garante.
Pouco depois de receber a comida que encomendou, faz-se à estrada para almoçar em casa, como quase todos os portugueses.
Na Praia de Carcavelos, os surfistas amontoaram-se sobre as ondas durante a manhã
NUNO BOTELHO
Comer sem pressas e surf coletivo
Falta pouco para o meio-dia e o parque de estacionamento faz lembrar o Natal. Não porque haja enfeites ou luzes coloridas, mas apenas porque está quase cheio. Se o Oeiras Park servisse de amostra, então seria possível confirmar que uma parte do País acomodou as compras para a parte da manhã de sábado. Quem não está no shopping poderá já ter feito as compras durante a semana – ou preferir passar a manhã em espaço aberto, como as centenas de surfistas na Praia de Carcavelos, que deixaram ondas e parques de estacionamento à cunha.
No centro comercial Oeiras Park, a afluência levou a crer que o Natal veio mais cedo
NUNO BOTELHO
Em contrapartida, no centro comercial, a adrenalina é outra. A maratona de compras entra na fase de sprint e notoriamente as filas crescem à medida que se aproximam as 13h00. Nos pisos da restauração, é o “vazio”, apesar de quase todos os restaurantes estarem abertos. Um ou outro estafeta tenta ir buscar comida para entrega ao domicílio e não há mais de meia dúzia de pessoas a comer. Uma circular interna alertou os restaurantes que é proibido servir comida depois das 13h00. Mas se alguém ainda estiver a comer a essa hora, não será alvo de pressão por parte de quem gere o espaço, garantem os responsáveis pelos restaurantes.
Nas lojas de pronto-a-vestir houve quem abrisse às 8h00 e descobrisse que de nada valeu – pois os consumidores terão deixado para outra altura as compras.
Chegam as 13h00 e já ninguém pode entrar no supermercado. Lá dentro as caixas fecham as últimas compras. A saída é feita de forma ordeira e sem pressa. Quem não fez tudo o que tinha a fazer já sabe: Domingo, há novo recolhimento depois das 13h00.